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O alardeado discurso
sobre a ignorância cultura do povo brasileiro tem íntima relação com os propósitos
colonialistas, que por séculos orientaram os valores das elites nacionais e
forjaram a visão de mundo dominante nas artes, cultura, religião e demais
estruturas da nossa sociedade. O alinhamento da ignorância das elites com o
preconceito dos colonizadores produziu uma visão inanimada da realidade
cultural brasileira. Através de um
discurso de desfiguração intentaram incutir a ideia de que as massas eram
incapazes de produzir cultura, e que suas muitas manifestações não passavam de
tentativas canhestras e mal sucedidas de se elevar ao nível da “verdadeira”
arte. Durante muito tempo, nos diz Octavio Paz, associou-se poder aquisitivo com valor
cultural e dessa maneira passou-se a desprestigiar as mensagens que emanavam do
povo como formas valiosas e representativas da cultura nacional. O trabalho de Antônio
Nóbrega, desde sua atuação no Quinteto
Armorial até hoje, com o espetáculo Lunário Perpétuo, dignifica a cultura
genuinamente nossa e desmistifica esses preconceitos e hostilidades, que por
séculos distanciaram o povo de suas manifestações mais legítimas. Baseado no
livro homônimo, o espetáculo Lunário Perpétuo, reconstitui as varias
manifestações artísticas que estão presentes, desde há milênios, no seio das
comunidades humanas instruindo, divertindo e principalmente perenizando a memória
do povo. O Lunário Perpétuo foi um livro de "sabenças" que circulou pelos rincões “carrascudos” do Brasil do século XVIII. Ele continha de tudo um
pouco, de biografias de santos a mapas astrológicos, de simpatias a acidentes geográficos,
antigas alquimias. Informava sobre países, dava dicas de como agir em casos de
terremotos, ensinava rezas, e muito mais. Um verdadeiro almanaque, que instruiu
gerações e mais gerações de nordestinos e alimentou a fantasia dos nossos
artistas de ontem e de hoje. Ele foi também uma valiosa fonte de informações
para os cordelistas que tiravam dele os muitos argumentos para construção de
seus poemas. Eu não sei quanto a vocês, mas sinto um arrepio pelo corpo como se
tivesse recebido uma descarga elétrica cada vez que assisto ao DVD do
espetáculo. Esse é um precioso registro das marcas de resistência da cultura
brasileira, contra as muitas tentativas de homogeneização da diversidade, que
sempre encontrou por aqui terreno viçoso.