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Com a devida vênia reproduzo o instigante texto recolhido aqui. Lane Donato é aluna do curso de Letras da UNEB, Campus VI Caetité.
Barthes
nos diz que a língua é fascista. Estamos
presos às amarras lingüísticas e a todas as ideologias que por elas circulam,
já que a língua é por excelência, o veículo das ideologias. Não somos livres!
Mas o próprio Barthes nos ensina o caminho da liberdade: ‘trapacear’ com a
língua - artifício que só conseguimos através da Literatura.
Ao
falar de nós e pra nós, nos fazendo passear por caminhos devolutos,
experiências e dramas tão comuns à essência humana, a literatura aproxima o
abismo existente entre a vida e o homem. Vida essa que ‘não nos basta’, mas que
a literatura preenche, na medida em que saltamos para dentro da história usando
o ‘pó de pirlimpimpim’ e nos apropriamos das personagens, de seus medos,
anseios, esperanças, alegrias.
Tenho
sorte na vida... A minha infância foi uma floresta encantada e infinita. Por
ela passaram lobos-maus, caçadores, sacis, iaras, príncipes, princesas! Sofri e
senti medo da bruxa com o João e a Maria.
Aprendi com a Branca de Neve e os Sete Anões que com verdadeiros amigos
é possível vencer as piores maldições- E
mais tarde , aprendi com O
Pequeno Príncipe o valor de cada respiração , de cada amigo. Chorei
agradecida. Viajei com Gulliver... As
histórias de Verne cultivaram em mim o gosto da liberdade. Descobri também que
quando se quer voar, é preciso se arriscar a ficar tonta. E mesmo assim o vôo
sempre valerá à pena. Já o amor ao vôo e aos passarinhos quem me ensinou foi o
Manoel de Barros. Foi o Manoel que
também despertou a criança adormecida em mim. Manoel transformou-se no meu
passaporte pra infância. Cresci e estudei com o Harry Potter em Hogwarts. Vi de
perto as batalhas de Carlos Magno e seus pares de França. Conheci Lampião e seu
bando nas trilhas do Cordel. E em cada linha, reconheci a voz de minha avó,
seus causos e exemplos.
Infelizmente
nenhuma Sherazade me acalentou o sono com suas histórias fantásticas antes de
dormir... Em compensação, tive um gênio e um tapete mágico de companhia por
todo o caminho. Quando o Ali Babá disse o ‘abre-te sésamo’, eu estava lá.
Pedrinho
me mostrou a força que há na coragem. Emília que a gramática pode ser divertida
e também ensinou a não me contentar com o dado e o pronto. E o Visconde, ah! O
Visconde ensinou-me a amar a sabedoria.
Ao
lado da Florbela Espanca vivi os amar-gos de minha adolescência... Foi nessa
mesma época que aprendi a conversar com Machado de Assis, Bentinho, Capitu,
Brás Cubas... Fui à cartomante e
descobri com o Alienista, que de médico e louco, todo mundo tem um pouco. Foi
também na adolescência que comecei a odiar o José de Alencar.
Com
Hamlet sofri as tensões, a crueldade da dúvida, a ânsia da vingança... Foi
Hamlet que me contou que a melhor saída é tomar boas doses de coragem e lutar
contra o mar de angústias que tantas vezes nos aflige em vez de abaixar a
cabeça e sofrer as ferozes flechadas do destino. Numa de nossas conversas, percebi que não
devo me assustar com o mundo... pois ele é por vezes sem graça, sem alma... inútil!
Lamentei
a morte e o amor de Romeu e Julieta... No entanto, suspirei com uma das mais
lindas declarações do universo..tanto que guardo até hoje alguns versos na
memória e no coração..‘Ah, então, minha santa criatura, permita que os lábios
façam o que as mãos fazem; tens de concordar comigo, em que elas se unem em
prece, para que a fé não se transforme em desespero’ [p.43].
Com
Otelo descobri como o ciúme corrói o mais nobre dos sentimentos... E a Bíblia
acresceu-me a fé na vida, na nobreza do amor, em Deus e em mim. Ah! Tantas
histórias assaltam-me a memória enquanto escrevo estas linhas!
Tantos
romances conseguiram chegar com profundidade em minha alma e mostrar-me, a face
hedionda e sórdida do ser humano, as sinuosidades da vida - E a vida, vivida
pelas páginas de um bom livro, apesar de todo o mau-agouro, desgosto, ainda nos
diz, baixinho ao pé do ouvido: ‘— Sonhe-me, vale a pena. Sonhe-me, que vai
gostar. ’
Muitos
outros personagens ainda convivem comigo. Ficam guardadinhos na caixinha mágica
da memória, sempre dispostos a aconselhar-me e a ajudar-me quando me falta a
palavra ou a coragem do gesto para expressar o que sinto.
Eles
entraram por uma porta que nunca mais se fechará: a porta do Sítio do Pica-pau
Amarelo. Desde o primeiro dia que abri
um livro do Monteiro Lobato, nunca mais saí dele. Mal sabia o Lobato que ao abrir-me as portas
do sítio, abria-me as portas do universo.
Cresci
com Narizinho e Pedrinho. Morei no
sítio, passei pelo reino das águas-claras.
O sítio ainda hoje respira compassivo nas minhas memórias de
infância. Em nenhuma dessas memórias há
lembranças racistas, preconceituosas. Pelo contrário, há apenas a nostalgia do
gosto pela aventura, pelas histórias, pela palavra.
Hoje
leio mais uma vez a notícia de censura contra a obra de Monteiro Lobato e
inevitavelmente pergunto-me: É Lobato o preconceituoso ou é a nossa sociedade
hipócrita, que joga o problema para debaixo do tapete e finge que não existe
racismo nesse país? Ele escreveu
apenas um discurso racista ou há outras dimensões em sua obra? Como limitar a
leitura de uma obra literária? Como
subestimar a imaginação de uma criança? Quem é capaz de adentrar no imaginário
de uma criança?
É
lamentável ver a violência contra a liberdade, a estupidez em tentar engessar o
discurso literário e a tentativa de escamotear um problema de ordem histórica,
política e social. Sim, o racismo sustenta as bases históricas de nossa
sociedade e é o crime mais perfeito que cometemos. Não é censurando e promovendo uma ‘ caça as
bruxas’ às obras do Monteiro Lobato que resolveremos a situação.
Ademais,
duvido muito que uma criança teça um olhar tão limitado a uma obra literária.
Porque estúpidos são os adultos, não elas.
Um comentário:
A Tita me mostrou o texto, achei fantástico, mas confesso, só agora fui ver que é da Lane. Nem reparei no blog dela. Eu ando realmente relapsa, não ando?
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