CONTOS POPULARES DO SERTÃO DA BAHIA
RESENHA
HAURÉLIO, Marco. Contos folclóricos
brasileiros. São Paulo: Paulus, 2010. 144 p.
Por Rogério Soares Brito[1]
Em todas as épocas os homens sempre
encontraram bons motivos para ouvir ou contar histórias. As tradições
populares, através de suas variadas manifestações culturais, encarregaram-se de
manter vivas as inúmeras histórias que há tempos persistem no imaginário e são
constantemente recontadas na forma de lendas, fábulas, contos, parábolas e
histórias fantásticas.
Ecos de tempos passados, muitas
histórias encantadoras e maravilhosas, que habitam o imaginário popular, têm
sido exaustivamente estudadas por pesquisadores, historiadores, psicanalistas,
além de inspirarem os trabalhos de escritores, como os irmãos Grimm, grandes
coletores de contos, Charles Perrault, Jean de La Fontaine, Hans Christian
Andersen, Monteiro Lobato entre outros. Marca indelével da cultura popular, a
literatura oral segue o ritmo da espontaneidade do povo, suas crenças,
tradições e festas.
Muitos foram os coletores de contos
populares ao longo da história; seus enredos exóticos e personagens misteriosos
despertam a curiosidade e a simpatia de um público variado, que não consegue
ficar indiferente a essas narrativas. Só para ficar no Brasil, essas narrativas
populares foram o foco de interesse de grandes estudiosos da cultura popular,
entre eles estão Sílvio Romero, Amadeu Amaral, Aluísio de Almeida, Câmara
Cascudo, Henriqueta Lisboa e outros. Porém, esses não são os seus criadores,
elas são criações do povo, manifestações genuínas das capacidades criativas de
populações historicamente marginalizadas.
Esse trabalho de pesquisa ou de
recolhimento das narrativas populares nunca foi pacífico. Alguns estudiosos
modificaram um pouco os relatos que coletaram. Outros simplesmente ignoraram os
valiosos e exemplares conselhos contidos nas histórias e, por excessivo brio
religioso, social ou político, resolveram mutilar os contos, caso do padre
francês Antoine Galland. Responsável pela tradução da obra As mil e uma Noites
para o Ocidente, ele interferiu diretamente na tradução ao deixar de fora
inúmeras narrativas. Acreditava assim preservar as consciências religiosas das
imoralidades que se ocultavam em várias histórias contadas pela princesa
Cheherazade.
Todavia a literatura oral segue viva e
conquistando mais e mais leitores, além de continuar atraindo o interesse de
outros pesquisadores, caso do poeta, editor e folclorista Marco Haurélio, nome
de prestígio no campo de estudo da cultura popular brasileira. Marco Haurélio
tem atuado na linha de frente das ações de valorização e preservação da herança
cultural do nosso povo, pesquisando, escrevendo e divulgando essa tradição
através da literatura de cordel e de livros infantojuvenis que abordam sempre
os temas da cultura popular.
Natural de Riacho de Santana, Bahia,
esse jovem escritor, que em julho completou 36 anos, recolheu, entre os anos em
que viveu na cidade vizinha a sua terra natal, Igaporã, enquanto cursava Letras
na UNEB/Campus VI (Caetité – BA) e lecionava numa escola pública do ensino
básico, uma centena de contos populares, lendas e fábulas, colhidas direto da
fonte mais preciosa, as vozes de anciões sabiamente nutridas pela tradição
popular.
Abertura da seção Contos de encantamento
ou maravilhosos (ilustração de maurício Negro)
O seu mais novo livro, Contos
Folclóricos Brasileiros, editado pela Paulus e ilustrado por Maurício Negro, é
fruto desse trabalho de pesquisa da cultura popular, que desde cedo seduziu o
autor. O livro não traz na íntegra todas as histórias recolhidas pelo autor
durante o período em que viveu em Igaporã, mas apenas algumas das narrativas,
coletadas entre as cidades de Serra do Ramalho, Bom Jesus da Lapa, Riacho de
Santana, Igaporã, Caetité e Brumado.[2] Esse primeiro trabalho será ampliado num
segundo livro, que além dos contos terá lendas e fábulas. Esse segundo trabalho
está com data prevista ainda para este ano, e sairá pela Nova Alexandria,
editora onde o autor trabalha como editor desde que saiu da Luzeiro,
tradicional casa editorial de grandes cordelistas.
Nascido em uma família de trabalhadores
rurais, Marco Haurélio ouviu, desde a mais tenra idade, de seu pai e de sua avó
Luzia Josefina de Farias as deslumbrantes lendas, aventuras, cenas de amores e
lutas religiosas, narradas saborosamente à luz de candeeiros movidos a
querosene. Desse imaginário cheio de exotismo aprendeu as mais ricas e belas
lições da vida em toda a sua maravilhosa diversidade. Dessas vivências é que
ele tira a substância para os seus trabalhos, sempre associados ao universo da
cultura e das tradições populares.
Com 36 contos, as narrativas contidas
nesse livro abordam uma variedade de temas. Vão dos contos de animais em que os
personagens, à moda das fábulas, personificam ações humanas, com fim
moralizante, passando dos contos maravilhosos ou de encantamento onde as
narrativas se desenrolam através das aventuras de personagens na busca de
realizações emocionais, até, como é próprio da tradição cultural popular,
narrativas com motivos religiosos, inspiradas nos evangelhos.
Outros temas, como os contos novelescos
ou de amor e recompensa, contos jocosos ou humorísticos, contos de fórmula ou
acumulativos e os contos de exemplo, completam a recolha. Os amantes das
histórias dos irmãos Grimm e os leitores de Perrault reconhecerão de pronto os
motivos de várias narrativas que aqui foram reincorporadas à tradição cultural
do Nordeste. Uma característica dos contos populares é que eles podem sofrer
transformações ao longo do tempo, porém sua essência é a mesma de um conto remoto,
contado em época e lugar completamente diferente. Isso pode ser exemplificado
pela máxima popular que diz: quem conta um conto aumenta um ponto.
Objetos de entretenimento, distração
despretensiosa, são muitos os usos que se pode dar a essas histórias. O certo,
no entanto, é que as várias narrativas presentes no imaginário popular, e agora
reunidas nesse fabuloso trabalho, servem-se do extraordinário e encantatório,
presentes nas histórias, como adereço à instrução dos homens, de todas as
idades. A sabedoria contida no conto popular é capaz de levar o homem, nas
palavras de Heinrich Zimmer, grande estudioso das culturas antigas, a uma
consciência de si próprio, suas potencialidades, bem como ao reconhecimento de
seus limites.
Despretensiosos em sua linguagem, os
contos recolhidos e recontados por Marco Haurélio seguem fielmente os falares
populares, tão variados e expressivos. Sem prejuízo ao entendimento do conto,
ou ao trabalho de verter das fontes orais, cheias de redundância, para a
escrita os vocábulos próprios e as expressões típicas dos contadores, os contos
recolhidos aqui preservam as nuances idiomáticas que caracterizam a fala do
povo. Veja-se um exemplo: no conto São Pedro e a questão das almas, a certa
altura se lê “São Pedro foi o santo mais teimoso e arteiroso que já
existiu...”. Arteiroso, expressão singular do vocabulário nordestino, aqui
preservada. Familiarizados com essas expressões, os nordestinos, principalmente
os da região onde foram recolhidos os contos, não encontrarão qualquer dificuldade
em entender o significado da palavra. Os leitores de outras regiões terão o
auxílio de um rico glossário atentamente preparado para desbaratar qualquer
dúvida quanto aos significados regionais que abundam nos contos. Nele podemos
ler: Arteiroso, sinônimo popular de teimoso e, em alguns casos, de inteligente.
Fonte inesgotável de saberes, os contos
populares, assim como as lendas e fábulas, são criações inspiradas de
civilizações antigas com o mais elevado propósito: corrigir quando parecem
incorrigíveis as malversações, alertar quando os sinais ainda não são
totalmente visíveis, fazendo vivos erros que, de tão graves e grosseiros, não
deveriam tornar a se repetir.
As distrações que eles promovem, não
escondem as mensagens profundas que são encenadas por animais e outros seres
mágicos, a fim de divertir, entretendo. Jean de La Fontaine, autor francês que
modernizou as fábulas do grego Esopo, quando falou a respeito do propósito de
suas fábulas, disse: “Sirvo-me dos animais para instruir os homens”.
Os contos populares estão ricamente
espalhados por todos os lugares do mundo. Migrando de região em região,
reincorporam elementos sempre novos das várias civilizações por onde andaram.
Puro alimento espiritual de um sem número de povos que, em sua maioria, já não
existem, mas que permanecem vivas, através dos tempos, como testemunhas de
épocas remotas, essas narrativas tradicionais encontraram pouso tranquilo e
morada segura nos rincões “carrascosos” do Brasil, e aqui persistem, graças aos
esforços e ao trabalho de homens como Marco Haurélio.
Essas histórias guardam íntima relação
com aquilo que chamamos de identidade de um povo. Se elas desaparecerem, parte
significativa da memória, sabiamente abrigada por anos no seio de corações
ardentes, some, e com ela, o registro dos hábitos e costumes que compõem as
tradições populares, elo entre o passado e o futuro de uma nação, também
desaparece. Estímulo às consciências, leitura prazerosa, os contos contidos
nesse saboroso livro entretêm, ensinando. Passatempo divertido, os contos
populares também servem de pretexto para reunir os amigos e a família numa roda
descontraída de leitura onde a imaginação cavalga por terras distantes.
Publicado em: Crítica & Debates, v.
1, n. 1, p. 1-4, jul./dez. 2010
[1] Professor Auxiliar do curso de
Letras da UNEB/Campus VI. Especialista em Literatura Comparada em Língua
Portuguesa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC / 2008).
[2] Cidades baianas localizadas na
região Sudoeste do Estado.
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