É interessante a leitura da discussão.
Nela percebemos que ainda albergamos em nós o pensamento evolucionista, que se
pauta na ideia de que antes vivíamos num estágio inferior e agora, com as novas
práticas subimos um degrau na evolução. Penso que isso é muito pretensioso. Mas
é comum. Ensina-nos a história, que as comunidades de um determinado tempo se
acham acima das demais e se sentem superiores as que a antecederam.
Se as práticas culturais existem, isso
se deve ao fato de que elas servem para cumprir, em determinadas comunidades,
papeis simbólicos que permitem a sobrevivência dos grupos sociais a ela
vinculadas. Não se trata de primitivismo.
Além disso, falamos com desprendimento
dos costumes alheios como se parte dele fizesse, e por isso podemos condena-los
e inferiorizá-los. Agiram de modo semelhante os primeiros antropólogos que
visitaram uma comunidade no pacífico que mantinha, aos olhos dos expedicionários,
uma prática primitiva de confecção de totens.
Cada agrupamento da ilha mantinha um
totem como símbolo de seu grupo. Um era peixe, outro era ave... O tabu imposto
pela tradição impedia que homens de um determinado grupo tivessem relação com
as mulheres que cultuavam o mesmo totem. Logo, os doutos cientistas sociais,
querendo integrar aqueles homens “primitivos”, num novo mundo, onde as
superstições haviam sido abolidas, se encarregaram de destruírem os totens.
Marcel Mauss vai dizer mais tarde que
aquela intervenção precipitou o fim da comunidade. Os totens de vários grupos
tinham funções de evitar os laços consanguíneos, que numa comunidade pequena
era a salvaguarda contras as doenças, porque agia para fortalecia a variação
genética que permitia a perpetuação dos vários grupos.
“Não há”, dizia Claude Levi-Strauss
“costumes que sobrevivam sem motivos”. As práticas de uma determinada
sociedade, por mais brutais que pareçam, servem a propósitos comunitários e
sociais, que nem sempre percebemos a razão. Essas práticas estão quase sempre
associadas à ideia de iniciação. Creio que não compete a nós dizer aos outros os
que são melhores.
“Nas sociedades primitivas”, escreveu
Joseph Campbell “dentes são arrancados, dolorosas escarificações são feitas, há
circuncisões, toda sorte de coisas acontecem, para que você abdique para sempre
do seu corpinho infantil e passe a ser algo inteiramente diferente. Quando eu
era criança, nós vestíamos calças curtas... calças pelos joelhos. E chegava
então o grande momento em que você vestia calças compridas.”
As mutilações fazem parte de ritos de
iniciação que integram as crianças ao mundo dos adultos. As mutilações têm
portanto uma função, não são meros atos bárbaros. Em nossa sociedade os ritos
de passagem foram abolidos ou edulcorados, não ajudam mais as pessoas a se
“relacionar com o mundo, ou a compreendê-lo, para além do meramente visível.”.
O resultado é que as crianças, escreveu Campbell, não sabem que já são homens e
precisam abandonar as criancices. Crescem como os jogadores de futebol,
infantilizados e imaturos. Ou como as madames, presas da propaganda cosmética,
que iludem as velhinhas com a promessa da eterna juventude.
No extraordinário ensaio sobre a arte da
tauromaquia, o antropólogo francês Michel Leiris, diz que o espetáculo brutal
da luta do homem contra o touro na arena ocupa aquele lugar de revelação de
experiências cruciais que esclarecem partes obscuras de nós mesmos. A luta e a matança do touro opera desse modo
uma purgação que aplaca os picos de febre sem que o homem tenha que recorrer,
para se exteriorizar, seja a uma via explosiva, seja a um disfarce utilitário
ou racional das vias reais.
“Mas em nossos dias”, escreveu o
antropólogo, “não é mais possível encontrar escape confessável para tais
impulsos... Daí o tédio, a impressão de vida castrada, a tal ponto que, aos
olhos de alguns, as conjunturas mais catastróficas podem parecer desejáveis,
uma vez que ao menos teriam o poder de colocar em jogo a totalidade de nossa
existência.”.
Trouxe esses exemplos de
"brutalidade" cultural para mostrar que eles existem por que cumprem
funções nas sociedades que as criaram. Aboli-las, pareceriam a nos que não
fazemos parte dessa realidade, a coisa mais sensata a se fazer. Porém, isso
implicaria um dano a elas que ameaçaria a sua sobrevivência. Como aconteceu com
as comunidades do pacifico que foram vítimas das melhores intenções ocidentais.
Temos que ter cautela ao nos
pronunciamos sobre realidades que nos são “estranhas”. No campo cultural o que
nos parece insensato funciona muitas vezes, como uma peça da grande engrenagem
que sustenta um todo social.
A vaquejada, que alguns dizem querer não
ter existido, cumpriu um importante papel na consolidação e expansão da
interiorização do país. Ajudou a criar e diversificar as manifestações
culturais a ela vinculadas e esteve presente nos processos de socialização dos
grupos migratórios que foram tangidos de seus lugares para outros. Reunidos
entorno de uma prática comum os nordestinos dispersos pelo país encontraram na vaquejada
um elemento de socialização que lhes garantiu por muito tempo a resistência
cultural.
Isso posto é preciso dizer também que
não se pode ignorar o fato de que novos tempos pedem respondas diferentes às
necessidades sociais. Hoje já não se tolera tanto a brutalidade. Além disso,
talvez a vaquejada não seja mais tão importante ao conjunto da sociedade que a
sustentou por tanto tampo. Cai-se então a resistência e a importância que ela
tinha para tantos. Novas necessidades impõem-se. Outras vozes não contempladas
pela cultura do couro de boi e do vaqueiro também pressionam pelo fim de uma
cultura que representa os padrões de uma sociedade que urge ser alterada as
suas fronteiras.
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