O poema abaixo foi escrito na
década de 80 pelo escritor Affonso Romano de Sant´anna, mas é de uma atualidade
inegável. Lendo-o posso confiar nas palavras de Mario Vargas Llosa que disse
ser a poesia o espaço da restauração e preservação dos sentidos nobres das
palavras. Os muitos usos que fazemos diariamente delas, associado a algumas
circunstâncias e licenças imorais que frequentemente ocorrem na política, na
economia e em outros setores da sociedade, desgastam os sentidos originários e
induzem as palavras um sentido enviesado, que tem como funções, desmerecer,
desacreditar e lançá-las no desuso, principalmente aquelas que mais importam
para construção de uma sociedade igualitária e justa.
Uma vez que não existe mais a
palavra some com ela o objeto ou a ação que lhe dava vida. Isso está ocorrendo
nesse instante e em toda parte. Essa não é uma ação impensada, como muitos poderiam
imaginar. Ao desarmar uma palavra os políticos e os malfeitores asseguram,
silenciosamente, uma visão de mundo em que todos os inconvenientes -ao menos aqueles
que lhes doem o calo - deixam de existir. Um mundo sem “ordem” ou organizado
segundo as vontades de um grupo cria uma nova língua e com ela os valores que
orientarão todas as ações. Foi assim que o Nazismo e as ditaduras privaram as
palavras Democracia e Liberdade de circulação e instalaram um regime de terror
sem precedentes na história.
Triste mundo em que a “paz”,o
“amor”, a “esperança”, a “decência”, a “justiça” e a “honestidade”, já não são
mais tão importantes ou significam o que um dia todos nós esperávamos. Pairam
sobre elas certa desconfiança que vão pouco a pouco mudando o seu sentido para
outra esfera, menos representativa e mais envelhecida pelo cansaço provocado
pela contradição dos discursos. Contra esse ataque às palavras, contra o seu
envelhecimento, contra o descrédito é que insurgir-se o poeta. A ele cabe
restituir, contra toda prova, os sentidos primários que o sistema insiste em
desprestigiar. O poema de Affonso Romano de Sant´anna exemplifica essa prática
do poeta. Ele lança luz sobre as contradições da sociedade brasileira e
questiona os valores sobre a qual ela insiste em se assentar, ao tempo em que,
revela como o discurso, baseado na divergência das ações, torna todas as
palavras pronunciadas pelo brasileiro um faz de conta.
SOBRE
A ATUAL VERGONHA DE SER BRASILEIRO
" Este é o
país do diz e do desdiz
onde o dito é
desmentidono mesmo instante em que é dito.
Não há linguista e erudito
que apure o sentido inscrito
nesse discurso invertido.
Aqui
o dito é o não-ditoe já ninguém pergunta
se será Benedito.
Aqui
o discurso se trunca:o sim é não
o não, talvez,
o talvez
-nunca".
Um comentário:
Texto maravilhoso Rogério...
Li e fiquei com uma sensação de engasgo, e com a certeza de que somente o poeta é capaz de jogar, e criar "ambientes", "imagens" que sobrevivem ao tempo; e que são capazes de provocar,em nós, os mais diversos sentimentos, seja qual for o momento e o pópósito com o qual nos dedicamos à leitura de um livro.
Boas-vindas.
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