A bonita leitura da Stultífera Navis para o clássico
sofocleano
Téo Júnior *
“Antígona”, magnífica obra legada
pela Grécia Antiga – e que dera o merecido prestígio ao seu autor, Sófocles (496
– 406 a.C), conquistando o 1º. Lugar no concurso trágico de 442 a.C, conta a
história da famosa donzela que, ao purificar o cadáver do irmão, assinaria sua
sentença de morte.
Os
conflitos e as reviravoltas que o texto vai, aos poucos, apresentando, reclamam
uma atenção e cuidado muito especiais de nossa parte, pois todo ele é permeado
de emoções viscerais e intensas, já que os personagens agem guiados por convicções
das quais não estão dispostos a retroceder tão facilmente.
Creonte,
uma vez estabelecido no trono de Tebas, parte do princípio de que deve ser obedecido
– e não questionado, sejam quais forem suas resoluções. Antígona, por seu
turno, considera-se no direito de transgredi-las, sim, quando estas não
estiverem chanceladas pelos deuses, a quem venera. Não se pode compreender o
teatro sofocleano sem se recordar de que os gregos eram profundamente religiosos
e, portanto, tementes à vingança implacável do Olimpo. Observando-se por este
ponto, notamos sem dificuldade, que são os poderosos – e não os meros mortais –
quem experimentam a audácia de burlar as leis divinas, desafiando não raro a
sabedoria dos oráculos etc., incorrendo-se desta forma em blasfêmia.
Mas,
como nada em teatro é tão simples quanto parece e antes que apontemos culpados
e inocentes, há um fator em “Antígona” ainda mais perturbador: a única criatura
que desacatou o decreto fixado pelo rei foi, ironicamente, sua própria sobrinha
– e que será dentro em breve, sua nora.
Até
que ponto o Estado pode interferir naquilo que o cidadão julga necessário
realizar? Eis a grande questão da peça, escrita há vinte e seis séculos.
Uma
leitura atenta de certos teóricos contemporâneos como Leyla Perrone (“Vira e
Mexe, Nacionalismo”; Cia. das Letras) e Umberto Eco (“Interpretação e Superinterpretação”;
Martins Fontes), desperta a atenção para com um fenômeno observado entre os
grandes textos literários: a profusão das analogias, de semelhanças que há
entre eles, cuja mensagem é a de que uma obra sempre está dialogando com a outra,
e sem que nenhuma delas perca sua originalidade. Não resisto à tentação de
estabelecer a maneira como Sófocles radiografou os poderosos: Creonte e Édipo (seu
antecessor) têm em comum a irritabilidade, a pressa em julgar quem lhes rodeia,
o (aparente) paternalismo pronto para converter-se em arrogância, e a fúria indisfarçável
que há em suas palavras quando seus desejos não são prontamente atendidos.
“Antígona”,
antes de ser uma tragédia onde três indivíduos morrem devido à resolução de um
tirano é, antes de tudo, uma parábola que sublinha aquele sentimento tão
escasso hoje em dia: o amor legítimo. Amor por parte da protagonista, ao não
permitir que o corpo de Polinices fosse profanado, servido de alimento para
aves e cães – e, ato contínuo, amor para com seus progenitores, que certamente
endossariam a empreitada. Amor de Hémon, destinado àquela que seria sua esposa,
ao rechaçar com veemência a decisão precipitada do pai. Amor de Tirésias, não
apenas para com a grandeza do gesto desta menina, mas principalmente respeito
para com as divindades – que brota, espontaneamente, de suas iluminadas
palavras.
Ao
acompanharmos “Antígona”, detendo-nos em cada detalhe, quer nas ponderações de
Ismênia, quer nos argumentos ambíguos do Coro e também no embate entre a
protagonista e o soberano (duas personalidades descomunais) temos a impressão
de estarmos ouvindo uma sinfonia, e não lendo uma obra teatral. Ao representar
“Antígona”, o mais destacado dramaturgo grego de todos os tempos – que deixou
para a humanidade peças do calibre de “Édipo-Rei” e “Electra” compôs uma linda
e admirável poesia.
“Antígona”,
por acaso, encerrou o bonito projeto do Sesc/Artes Cênicas. Como não há a menor
possibilidade de se analisar todas as peças do programa, optou-se em apreciar a
obra de Sófocles, dada sua imortalidade. Isso, é claro, sem qualquer intenção
de desmerecer nenhuma das demais. Estão de parabéns os organizadores e elencos.
Agora,
vamos a nós: o Coro, em seu todo, foi uma surpresa. Composto por vinte pessoas
– moças e rapazes em trajes quase que sumários – e que amiúde movimentavam-se
como verdadeiros malabaristas, se contorcendo em vigas de ferro, lembraram-nos
um picadeiro. Alguns atores, inclusive, apareceram nus, remetendo-nos (é
inevitável) às carnavalescas montagens de Zé Celso Martinez. Existe uma cena no
espetáculo que, a meu ver, fora extremamente inútil: quando todos eles se
abraçam, esfregando-se uns nos outros, numa estranha dança carregada de
lascívia. Sem dúvida, o diretor quis passar a ideia da unidade da opinião pública
defendendo a postura da protagonista. Porém, essa imagem, sensualizada ao
extremo, não me pareceu a mais adequada, posto que não acrescenta nada ao
enredo. Bastava o momento (feliz) em que o coro sorri, à revelia do rei,
deixando transparecer sua censura quanto ao edito, sem a necessidade de
sexualizar a cena.
IRREVERÊNCIA
Kassem,
caracterizado como um palhaço no papel do Emissário foi um equívoco: seu modo
excessivamente irreverente ao narrar ao rei a descoberta dos cuidados ao
cadáver interditado, mais lembraram o bobo da corte do que um infeliz servidor
que teve o azar de ser o portador da mesma. Sua maneira infantilizada de se
expressar é inaceitável sob qualquer aspecto, na medida em que ele está diante
de uma autoridade – a quem se deve temer – e não parlamentando com um amigo ou
um colega. Se o personagem nos diz claramente: “Eis-me aqui, contra a minha
vontade e contra a vossa, porque ninguém se alegra em ser o portador de más
notícias”, como explicar que ele fosse tão satisfeito e descontraído ao
anunciá-las?
Edênia Góis (Eurídice),
Marcelo Paz (Hémon; papel que nada tem de fácil), Régi Gondim (Corifeu) e Sandra
Azevedo (Ismênia) embora aparecendo menos, desempenharam seus papéis com
bastante competência.
A
interpretação de Jane Carvalho (Tirésias) fora louvável. Ela entrou, deixou seu
recado e retirou-se – mas eu gostaria de fazer uma ressalva: na medida em que
vai falando, o personagem começa a rolar no chão, convulsivamente,
desenhando-se a nossos olhos um quadro grotesco. É algo que não deixa de
surpreender, porque esse arrebatamento, cujo espírito revela-se demasiado
agitado e ressentido, não caracterizam o adivinho com exatidão. Como o homem
que “traz consigo a força da verdade”, Tirésias representa antes de tudo a
mansidão e a tolerância, sempre aliadas àqueles que são os intérpretes dos
deuses. No caso, não se trata nem de um erro – e sim de um evidente exagero.
O Creonte de
Lindemberg Monteiro era exatamente o que se esperava. Categórico e resoluto em
suas decisões, sua voz fez-se ouvir e respeitar. A atuação dele possui a
energia e o vigor inerentes ao grande personagem que interpreta.
Por fim, a
protagonista. Meu Deus, o que foi aquilo que vimos na Casa da Rua da Cultura no
último domingo? O desempenho de Aimée Resende foi tão sincero e corajoso, que
somente uma atriz profundamente passional seria capaz de realizar. Há na
atuação de Aimée a determinação latente que as heroínas obstinadas exigem. O
momento em que ela balança-se freneticamente, apoiada sob um cabo de aço,
despedindo-se dos cidadãos, fora simplesmente magistral e carregado de beleza.
Comovente e inesquecível.
No cômputo
geral, parece que com “Antígona”, a parada da Cia. Stultífera Navis está ganha.
A direção de Lindemberg Monteiro justificou-se na medida de se adaptar aos
nossos dias um clássico com ideias bastante sugestivas. O espetáculo fora
apresentado gratuitamente. A ovação que se seguiu ao seu término atestou que se
trata, efetivamente, de um grande trabalho.
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* É professor e pesquisador de
teatro.
Contato: @junior_teo
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