A poesia é certamente daquelas raras
coisas humanas que nos conforta e nos protege das amostras de estupidez e
loucuras que os dias nos trazem. Por isso é sempre triste saber que um desses abnegados
desconstrutores de desenganos partiu. De regresso ao blog, depois de alguns
dias ausentes dou com a triste notícia do passamento do poeta português Herberto Helder, ocorrida na última segunda-feira, 23. Para grande maioria dos
brasileiros o nome de Herberto Helder, como de resto acontece com quase todos
os nomes de poetas por aqui, é uma novidade, que somente a morte é capaz de arrancar
do anonimato (ou talvez nem isso). O mesmo não acontece em seu país. Em Portugal
Herberto Helder foi cultuado e admirado como o "maior poeta português da
segunda metade do século XX". Isso tudo sem se deixar fotografar, sem dá
entrevistas, e publicar em intervalos de anos longuíssimo. Como se vê ele não
era dado a salamaleques. Sua entrega era à arte. Valendo-se apenas de sua
inventividade poética que tinha entre outras qualidades precipitar o leitor em
certas realidades suscitadoras de questionamentos das aparências, Helder
construiu uma carreira poética “pelo talento de algumas palavras para se
moverem no caos”. Abaixo um dos poemas que mais recito do poeta, que morreu
gregamente.
Li algures que os gregos antigos não
escreviam necrológios
li algures que os gregos antigos não
escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero
saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se
moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios
com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio
tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens
extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas
grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram
nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda
à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida
ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção
curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que
fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o
gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu
dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e
moderna,
os cegos, os temperados, que não, que ao
menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega
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