Blaise Cendrars a Féla Poznanska

Sê bem-vinda. Há muito que ando fugido
do mundo, de celas antigas, domésticas,
por isso sê bem-vinda ao lugar da fuga.
Dou-te a minha mão para que sintas
o nervo nómada, a desmesura de quem parte
em aventura, o tempo que se cumpre
em cada travessia. Dou-te o meu braço
direito porque é nele que o coração
transita, como um comboio que parte
e retorna para poder voltar a partir.

Sê bem-vinda à fome, à miséria,
à solidão que a todos chega e finalmente
pergunta: que fazes aqui? Respondo
à solidão que faço o meu tempo,
nenhum relógio poderá marcar a distância,
nenhum ponteiro indicará o caminho,
seguiremos por onde lutar for resposta,
seremos a espuma dos dias mais belos,
das horas mais livres. Tu e eu, de mãos
dadas, dançando o tempo com fervor,
sem nenhum ruído que nos impeça
a poesia, a música, a liberdade.

Repara: os homens sem escudos
precisam abrigar-se de si próprios,
tudo podem contra o mundo, nenhuma
estação lhes estacionará a fuga.
Talvez descubram um dia na berma
de uma estrada batida, entre o mato
da floresta, numa duna desértica, talvez
aí descubram a sombra que os proteja
do calor insuportável que sobre eles paira
logo à nascença. Trazem dentro uma erupção
contida que só a paciência da espera
poderá suportar. E tu foste essa paciência.

És a mais bela desordem que me aconteceu.
Sentado na estação a observar
famílias inteiras em trânsito, penso
naquele impulso que um dia me impeliu
para fora das quatro paredes de um
quarto frio. Saltei pela janela, corri
sem direcção, corri para onde me levasse
a direcção de apenas correr. O meu destino
eras tu. Tu, pedaço de terra onde ergui
a única morada que me serviu de abrigo.


"A Dança das Feridas" - Henrique Bento Fialho

Nenhum comentário: