João Cabral de Melo
Neto é um poeta deslocado da tradição lírica dominante na literatura
brasileira. O vigor de sua obra vem do exercício rigoroso da racionalidade
imposta na construção dos seus versos.
Contrafeito a todo
transbordamento melancólico e ao psicologismo discursivo, ele segue as lições
de Mallarmé de que não se fazem versos com ideias, sentimentos, ou proposições,
mas sim com palavras.
Sua literatura se funda
na realização concreta dum universo poético onde rigor de construção e riqueza
de significação, se interpenetra e se complementam; razão pela qual, sua poesia
feita de coisas, se orienta como forma de significar o mundo pelos elementos do
mundo.
Essas características
fogem à média de uma tradição poética estabelecida no predomínio do “sentimental-confecional”,
e formam um corpo estranho no percurso de nossas letras. Nossos mais destacados
poetas, sempre optaram do romantismo até hoje, em explorarem o interior de si
mesmos, se perdendo num labirinto de remoço, dores, queixas e muita desilusão.
Ler a obra de João
Cabral e se sentir animado, vivo, é coisa fácil. Dele, a gente sai revigorado,
e certo de que ao homem, cabe bem mais do que apenas lamber as suas chagas. Cabe,
acima de tudo, encarar os desafios impostos no percurso sinuoso que nos leva,
invariavelmente, a “indesejada das gentes”, com destemor.
A poesia cabralina nos
ensina que a vida está sempre por um fio. Ela não se dá, tem que ser tomada. Como
a poesia que ele fez e entendeu, ela não vem sem luta. Como os toureiros
ameaçados pelo chifre do touro, sob o olhar de uma plateia implacável, a vida é
um esquivar-se dos golpes mais violentos até o dia em que a lança do animal vença
a lança do homem.
Segue um poema exemplar
de João Cabral sobre sua vida e sua poesia:
ALGUNS TOUREIROS
A Antônio Houaiss
Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de
Sevilha: precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio
Aparício,
de Madrid, como
Parrita: ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da
Andaluzia, que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.
E também Antonio
Ordóñez,
que cultiva flor
antiga: perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel
Rodríguez,
Manolete, o mais
deserto, o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira,
de punhos secos de
fibra o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava
o fluido aceiro da
vida, o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,
sim, eu vi Manuel
Rodríguez,
Manolete, o mais
asceta, não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e
contida, sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então,
trabalhá-la
com mão certa, pouca e
extrema: sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
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