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Todos os anos é a mesma coisa. As ruas
se enchem de alegria. O silêncio é quebrado por inumeráveis gritos de festas
que se espalham por todos os cantos. As cores vibram no ar, na terra, no mar e
misturam-se aos corpos que se contorcem, questionando a lógico do que pode um
corpo. Multidões invadem todos os sítios. Velhos reumáticos, apoiados em seus
mais novos membros, derivam às ruas, acompanhando a corrente que se infiltra como
sangue renovado nas artérias das cidades, imprimindo-lhes novos ânimos por
todos os cantos. Homens e mulheres andam por todas as partes desejando praticar
livremente todos os prazeres. Estão todos mascarados, desmazeladas ou cheios de
opulência e anunciam aos berros que é Carnaval, aqui e alhures.
As festas do Carnaval fazem parte de um
tempo extraordinário. Muitos povos tiveram o hábito de observar um período do
ano em que as normas sociais eram temporariamente suspensas para o gozo das
liberdades de costumes, onde as paixões mais inflamadas não encontravam nenhuma
oposição ou constrangimento. Durante esse período, os homens punham as leis e a
moral, habitualmente rígidas e intransponíveis, sob suspensão. A palavra de
ordem era: transgressão.
De todos esses períodos de ruptura das
proibições o mais conhecido e que deu origem – provavelmente - ao nosso
Carnaval, foi aquele que se relacionava com os festejos romanos das Saturnais,
ou Saturnálias, que comemoravam o reinado do antigo deus romano da agricultura,
Saturno. Um dos aspectos mais interessante dessa festa, que reconstituía o
governo de Saturno, estava na concessão aos escravos, de liberdades para agirem
com vitupérios e escarnio contra os seus próprios patrões durante um curto
período do mês de dezembro, época dos festejos da colheita e da celebração da
divindade.
Segundo a mitologia grega, Saturno era
uma divindade romana identificada com o deus grego Cronos. No tempo em que esse
deus reinava sobre a Itália os homens, nos fala o mito, viviam libertos dos
enfados. Ninguém conhecia a injustiça porque não havia necessidade de bens. A distinção
de classes não era conhecida. Todos gozavam de igual liberdade e não tinham
sido inventadas ainda as portas, porque o roubo não existia e os homens nada
tinham a esconder. O reino de Saturno foi um reino extraordinariamente próspero,
por isso essa época ficou conhecida como a Idade de Ouro.
Inspirados nesse mito os romanos
realizavam todos os anos uma celebração à memória do deus e reviviam provisoriamente
a época do reino de Saturno. Comer e beber lautamente, participar de alegres
celebrações e buscar imoderadamente os prazeres eram, segundo James Frazer, as características
que parecem ter marcado particularmente aqueles carnavais da antiguidade, que
se prolongaram ao nosso tempo através da diluição dos velhos ritos romanos nos
festejos do calendário Cristão, associados a entrada da Quaresma, quando nos
despedimos dos excessos da carne (de onde veio a moderna designação de
“Carnaval”), para ingressar no período de privações. Ainda que sejam associadas
inteiramente aos ritos pagãos o mito não deixa de possuir um sentido cristão
que está diretamente ligado à sua gênese, como pode ser apurado por sua relação
como o período do ano litúrgico que antecede a Páscoa.
As semelhanças entre as Saturnais
romanas e o Carnaval já foram observadas várias vezes. Herdeiros que somos de
muitas das tradições latinas, esses festejos antigos encontraram morada segura
entre a nossa gente, que alegremente celebram o rito que permite uma
restauração do reinado daquele alegre monarca que presidia às orgias numa terra
de abundância, que não conhecia nenhum rumor de guerra ou de discórdia entre os
homens.
Para alguns esta é a data do ano mais
esperada. As pessoas planejam com muita antecedência esse momento. Os pobres gastam
o que não têm em luxuriantes adornos, cheios de brilho e plumas só para
satisfazerem, por um breve instante de suas vidas, o desejo de serem o que a
realidade e outras farsas, interditaram. Nesses dias os sonhos ganham todas as
formas e o ordinário da vida passa a ser a exceção.
O povo não apenas se permite sonhar com
um tempo de fartura, mas ousa concretizar esse sonho imprimindo tudo de si. Alguns
veem nessa ação uma irresponsabilidade dos que já têm tão pouco. Gastar os
últimos recursos, numa fantasia, enquanto o barraco ameaça mais uma vez
despencar morro a baixo? Inquietam-se os conservadores. Mas por trás dessa
sublevação existe uma reivindicação inconsciente das camadas populares, que
ousam afrontar os estratos sociais e bradam contra as imposturas dos mandatário,
que impõe ao povo, inacreditáveis limitações. “Isso é um protesto do sonho
contra a injustiça” disse Ariano Suassuna em uma de suas aulas
espetáculo, falando a propósito das espetaculares fantasias criadas pelo povo
durante o Carnaval.
Nesses dias licenciosos o povo tem a
chance de sonhar com uma realidade menos dura. Mas até mesmo esse dia, de libertação das
privações, encontra-se hoje inteiramente ameaçado pela intromissão dos
aparelhos da Indústria Cultural nas manifestações genuínas do povo. Este aparelhamento
retira o protagonismo das gentes simples das festas e tenta substituí-lo por
organizações mafiosas que represam com cinismo as espontâneas manifestações de
rebeldia popular com potencial poder de amotinação.
O Carnaval guarda em germe a esperança
humana de um mundo porvir onde a vida será uma festa.
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