O pintor catalão Juan Miró é classificado como
Surrealista. Porém, em comparação com os seus pares, Salvador Dali, René
Magritte e Marx Ernest, que nunca deixaram totalmente a arte figurativa, Miró
parece marcar uma cissão. Cissão que, se não o distancia dessa corrente
vanguardista de todo, distingue suas obras dos demais. Ele radicalizou sua
paleta ao construir um universo de seres disformes, retorcidos no tempo e no
espaço que destoam da tradição de seus antecessores.
Os traços inquietantes que molduram os quadros de
Juan Miró (1893-1983) estão quase sempre associados aos desenhos infantis, aos
sonhos ou mesmo as fantasias mirabolantes de uma mente caprichosa, capaz de
fabular mundos cujos limites são indeterminados. Miró é um provocador. Seu
pincel produziu em mais de 50 anos de atividade, um universo incomum e
extraordinariamente original, inteiramente refratário a lógica convencional das
classificações e das definições enclausurantes. As intrincadas formas que dominam o espaço infinito
da pintura de Miró se divertem indiferentes aos olhares dos que tentam
organizar a pintura, na busca de uma razão de sua existência.
Diante de quadros tão enigmáticos como, Pintura,
Hombre y mujer ante un montón de excrementos,
El
Galo ou El carnaval del
Alerquín, só para ficar com alguns exemplos, o
espectador fica tentado ao exercício de classificação. No entanto, estou
convencido de que sua obra dispensa essa operação catalográfica, na medida em
que toda e qualquer classificação, atribuída a ele, ao invés de esclarecer os
sentidos de sua arte, produz na verdade, um reducionismo patético, que em nada
dignifica o trabalho daquele que desde sempre se tornou inclassificável.
El carnaval de Arlequín - 1924-1925 (aqui)
Miró é o artista por excelência. Seu gênio que não
aceita classificação, também renega os princípios da composição consagrada pela
tradição Renascentista, que por muitos séculos dominou a arte no Ocidente. Ao lado de Pablo Picasso, Braque, Marx Ernest
e outros, ele aboliu a perspectiva, a proporção e fundou uma linguagem própria,
facilmente identificável com suas convicções artísticas, que tinha como única
proposição, a livre expressão. Não se confunda aqui livre expressão, com aquela
noção dominante nas artes contemporâneas, que abusa do sentido da liberdade
conquistada pelo artista moderno, somente para, disfarçar sua canastrice e falta
de sensibilidade diante do fenômeno artístico.
João Cabral de Melo Neto que foi seu amigo e
escreveu sobre ele um ensaio, intitulado Juan
Miró, num dos períodos mais duros da ditadura de Franco, disse dele: “A obra de Miró é, essencialmente, uma luta
para devolver ao pintor uma liberdade de composição há muito tempo perdida. Não
uma liberdade absoluta, nem uma angélica liberação de qualquer imposição da
realidade ou da necessidade de um sistema para abordar a realidade. É sim, uma
luta por libertar o pintor de um sistema determinado, de uma arquitetura que
limita os movimentos da pintura.”[1]. Parece
ser justamente contra os limites como concluir João Cabral - da composição e
por extensão das intenções - que se revoltou o pincel de Juan Miró.
Autoretrato (Aqui) |
Nele, tempo, forma e espaço foram inteiramente distorcidos criando com isso, um universo particular, habitado por seres que compartilham, com os traços primitivos, semelhança inconteste. Miró é todo intuição. Seu trabalho artístico funde imagens insólitas numa articulação que ressalta uma identidade nova aos elementos díspares, que compõem o quadro. Daí sua associação com a atmosfera onírica própria dos Surrealistas. Porém, Miró vai mais longe. O alegre colorido que emana de algumas de suas telas, revelam um mundo em que as limitações das formas, a plasticidade dos objetos, pertencem a um universo extra-artístico, portanto, estranho a pintura desse catalão, que deu ao imponderável a sensibilidade mais comovente.
[1] O
ensaio encontra-se publicado nas Obras Completas de João Cabral de Melo Neto,
editado pela Nova Aguilar, 1994. p. 719.
Nenhum comentário:
Postar um comentário