As tentativas de ameaça à liberdade de
expressão, ocorridas no último dia 7 de janeiro em Paris, seguiu-se um
movimento contrário de resistência à intolerância e ao arbítrio dos que
empunham a fé para legitimarem suas insanidades. No mesmo instante em que eram
rechaçadas as tentativas de intimidação da livre expressão, algumas pessoas
tentavam justificar os atos dos assassinos atribuindo a culpa das mortes aos
mortos. Segundo estes, os cartunistas do Charlie
Hebdo provocaram a cólera dos radicais ao violarem preceitos sagrados do
Islã, que não tolera a representação do profeta. E o que dizer dos outros
mortos na fuga dos energúmenos que nada tinham a ver com os cartunistas? Para os
devotos das religiões da morte o respeito à fé alheia está acima das pretensões
de liberdades de expressar. Não me causa nenhum espanto estas atitudes de simpatia
de alguns aos atos dos assassinos. No dia 14 de fevereiro de 1989 o escritor indiano
Salman Rushdie foi sentenciado à morte pela maior autoridade do islamismo no
mundo o aiatolá Khomeini, líder da revolução islâmica no Irã, unicamente por ter
escrito um livro de ficção, Os versos
Satânicos. Para concretizar o seu plano de vingança contra o escritor herético,
o líder dessa sentença santa, não apenas ofereceu dinheiro vivo aos
interessados na empresa, mas também uma passagem direta, sem pedágio para o Paraíso.
O episódio insano não gerou, como agora, das autoridades religiosas ocidentais
um repúdio sério. Como ocorrido com Rushdie no passado e agora com os cartunistas
do Cherlie Hebdo, uma parcela das
pessoas, incluindo líderes religiosos e personalidades públicas não pareceu
nada demais autoridades religiosas ou seus verdugos vingarem uma discordância,
com derramamento de sangue. Embora a história diga o contrário, os agentes
higiênicos da sociedade, estão certos de que a boa-fé da religião islâmica
(como de resto ocorre com as demais inspirações divinas) só tem maravilhas.
Maomé e seus seguidores jamais se contradisseram e a religião é um poço de
bonança onde o homem cansado mata a sua sede. Essa interpretação das religiões
como oásis de candura serve apenas aos acólitos. As escrituras santas são invioláveis
em sua sabedoria e mesmo que alguns hadith
puna a apostasia com a pena de morte, ou que o homossexualismo seja um crime
passível de decapitação ou que meninas de 9 anos tenham que se casarem, assim
como uma das mulheres do profeta se cassou nessa idade, ou que outras mulheres
devam ser mutiladas para não sentirem prazer, nada disso perturba a crença
daqueles que se recusaram em condenar com veemência as barbaridades dos
fundamentalistas em Paris. O pensamento fundamentalista não tolera a livre
expressão porque ela não se conforma com as incoerências do pensamento
dogmático religioso. Extinguir pela força os juízos e juízes opostos às suas interpretações
do mundo é um grave perigo. Gostaria de entender como pessoas de fé possuem
vantagens morais sobre as demais e só por isso elas estão autorizadas a
matarem. Por que os religiosos, sejam do Islã ou de outras seitas, devem ter
imunidade divina para suas práticas, e como, perpetrando os piores horrores e
imoralidades, eles ainda gozam de destacados privilégios, como sanções a críticas?
As religiões podem oferecer consolo e elevação a algumas almas perdidas, mas
isso não pode nos impedir de lembrar que elas também são bárbaras. Todas as
religiões têm nódoas irremovíveis de sangue. Querê-las imunes às críticas,
livres da exposição de suas contradições não as ajuda a removerem o seu passado
de trevas, muito menos conter o fanatismo cego dos que matam e trucidam os que
pensam contrários às suas doutrinas de morte. Nada pode ser mais temido pelos
legisladores da fé do que ter a sua autoridade questionada. A sátira corrói a
autoridade e seus instrumentos de controle, por isso elas são combatidas, por
isso elas são temidas. Ao escarnecerem dos vultos religiosos, que escarnecem
todos os dias dos homens, o riso das charges ajudam a deslegitimar interpretações que dotam alguns de autoridade sobre a vida e a morte.
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