TODA NUDEZ FOI APLAUDIDA

Darlene e Paulo Porto. Ele, viúvo; ela, uma puta triste. Agora, é enfrentar a família dele
A “Sessão Brasil” desta segunda 28 vai apresentar "Toda nudez será castigada", a versão mais feliz de uma peça de Nelson para as telas


NELSON RODRIGUES (1912 – 1980), o maior teatrólogo do país, e escritor mais adaptado para o cinema e para a televisão (o segundo é Jorge Amado) indiscutivelmente, escreveu peças magistrais, dentre elas uma pode ser classificada como obra-prima. Trata-se da “obsessão em 3 atos” Toda Nudez será castigada, escrita em 1965 e encenada a duras penas porque as atrizes mais tarimbadas do Rio (dentre elas Fernanda Montenegro) sentiram o peso da personagem Geni e repudiaram a personagem de cara. Ela é a protagonista da história. Nada menos que seis atrizes, por vai-se saber quais razões, leram a peça mas deixaram de assinar o contrato porque Geni passava dos limites. Numa das cenas – atenção: isto não está no filme, estou falando ainda da peça – depois de passar três dias seguidos num quarto com Herculano, bêbado até a medula, viúvo casto que não aceita a morte da mulher de jeito nenhum, Geni implora a ele para que a leve ao médico. “Herculano, meus ovários estão doendo!”. Saldo da brincadeira: doze relações sexuais numa biboca de quinta classe, onde Geni, digamos, “trabalha”. Que atriz, por mais emancipada que fosse, queria fazer isso, mesmo sabendo que se tratava de uma peça magistral (elas, no fundo, sabiam) digna do melhor teatro do mundo? Cleyde Yaconis quis.
O jeito, então, foi trazer de São Paulo a grande atriz, essa sim corajosa, sobretudo – para interpretar essa que julgo ser a prostituta mais famosa da nossa dramaturgia. (Outra seria Neusa Suely, de “Navalha na carne”). Nelson pôde sentir o gostinho da vingança depois, porque a peça fez um tremendo sucesso, foi enaltecida pelos melhores críticos, excursionou pelo país inteiro, até o momento em que teve de ser submetida à censura.
Arnaldo Jabor adaptou o texto em 1973. Infelizmente, a censura cortou algumas coisas do filme, também. Não sei se na exibição dessa segunda, as cenas que foram cortadas da versão original entrem. Pelo menos não entrou nos Dvds que foram comercializados. O filme faz parte da “Coleção Arnaldo Jabor”, tem apresentação do próprio. Impulsionado pelo sucesso de Toda Nudez, consagrando internacionalmente a estrela máxima do filme, Darlene Gloria, hoje crente, como a prostituta. Arnaldo filmaria outro Nelson Rodrigues em 1975, O Casamento, com duzentas mil depravações a mais que a antecessora. O romance, a meu ver, foi um passo atrás na literatura do autor, e, francamente, precisa-se de muito estômago para se chegar até o fim do livro. Esse filme não teve repercussão e até hoje muita gente sequer sabe que existe. Nem eu tive interesse de vê-lo. (Por enquanto)
Mas, do que trata o filme que será exibido nesta segunda-feira, 35 anos depois de feito? Dos “laços de família” de um viúvo milionário e que ainda mora com as três tias, velhas umas, doida outra, impertinente todas, pai de um filho adolescente fresco e irmão de um banana, Patrício (Paulo César Peréio) até o aparecimento de Geni, alterando profundamente as relações entre eles. O caso é que Herculano apaixonou-se por ela, quer casar-se, e, sobretudo, tirá-la dessa vida. “Você é humana, Geni”, ele fala no filme. Antes de conhecê-la, o puritano Herculano, quando soube de sua existência, por alto, disse que “Vagabunda é vagabunda sempre”. Num dado momento, para humilhá-la, ele grita: “Você é publica! Pública!”. Com o tempo, Herculano se apaixona por ela e está disposto a esquecer o passado e a começar uma nova vida de casado, transformando-a numa “dama”, digamos. Agora, é enfrentar o filho e as tias gagás.
Com trilha sonora de Roberto e Erasmo, elenco magistral, onde despontava o jovem Paulo Sacks (Serginho) – cadê ele? – a trama é bem rodriguiana. Nelson escrevia sobre o amor. Não importa de que jeito. Como na música de Milton Nascimento, para Nelson Rodrigues, “qualquer maneira de amor vale a pena e qualquer maneira de amor valerá”. Confira! Na madrugada de segunda para terça, 2 h da manhã, após o “Programa do Jô”.

A UNANIMIDADE INTELIGENTE

Chico Buarque, um artista magistral:43 anos de carreira
A MPB não seria o que é não fossem suas obras
O cidadão Chico Buarque de Hollanda, 63, é a certeza de qualquer artista que se preze. Não conheço um cantor digno que não tenha gravado alguma coisa escrita por ele. O restante da humanidade o considera e o respeita. “Perto do Chico Buarque”, de acordo com o fabuloso Otto Lara Resende, “todo homem é potencialmente corno. Se sua mulher está com você agora, é porque ela não teve a competência para ficar com Chico Buarque”. Mas, por que Chico é essa unanimidade toda, a ponto de ser superior a qualquer outro homem?
É simples. Porque ele é perfeito. Bonito, charmoso, rico, inteligente, talentoso... “É o único artista da MPB saído da classe média”, disse certa vez o pesquisador e historiador de música popular José Ramos Tinhorão. Dirão alguns que isso não alteraria sua criação. Talvez. Mas de classe social favorecida, teve contato mais próximo com uma cultura que, como todos nós já estamos carecas de saber, é artigo de luxo. Descende da melhor linhagem de intelectuais do país. Raízes do Brasil, o estupendo livro de seu pai, Sergio, é indispensável para quem deseja conhecer a fundo a história de nossa formação. Chico é a prova – a exceção de uma regra estúpida –, de que nem sempre os privilegiados vivem na mesquinharia, na banalidade, no ócio que aliena, enfim, comportamentos que o dinheiro fácil oferece a quem tem. Ao invés de esticar as pernas e sossegar o facho, Chico Buarque decidiu trabalhar numa notável “construção” (olha aí!) e deu-nos uma obra tão rica, tão profunda, tão bem-acabada, que não há meio de não a admirarmos. Pode-se dizer de Chico o mesmo que o velho Manuel Bandeira disse de Rachel de Queiros: “Nunca o louvaremos bem”. Em suma, ele é um grande criador. Imagine que Chico começou a escrever aos 20 anos. Deu a Nara Leão sua A Banda, para que ela a defendesse num festival desse aí, na década de 60. Sucesso nacional. Meu “pai” Nelson Rodrigues, depois de chamá-lo de “talento das novas gerações”, escreveu uma crônica dizendo que “antes de A Banda, ninguém assoviava mais. O brasileiro voltou a assoviar graças a Chico”.
Mas, como conheci Chico? Conheço-o desde quando eu tinha 15 anos. (Hoje, os meninos de 15 anos sabem o quê, pelo amor de Deus? Nada! Nessa idade não vêem um palmo adiante do nariz). Continuando: Um colega meu, me emprestou, de seu pai, um disco de vinil chamado “Os Sucessos da MPB”. Lembro-me de que quem escreveu o comentário, na contra-capa do disco, foi um senhor chamado Affonso Romano de Santanna. Vim saber, muito tempo depois, que ele é também poeta. Nesta jóia, de Chico Buarque, constavam Partido Alto (interpretação de Caetano Veloso. Caiu como uma luva para ele. Repare: “Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio/ Pele e osso, simplesmente, quase sem recheio...”) e Folhetim. Me apaixonei particularmente por Folhetim, gravação de Gal Costa. Alguns anos depois, um crítico – não me lembro mais quem – afirmou que Gal jogou naquela interpretação, toda a sensualidade e a malícia da prostituta (“dessas que só dizem ‘sim’ ”) da letra. Eu também achei.
Já ouvi muita gente dizer que Chico é melhor compondo do que cantando. Não que ele seja um mau cantor, não é isso, mas Chico é, antes de mais nada, o compositor. Tive a oportunidade de conhecer algumas de suas obras-primas, e cito as que mais me impressionou: Bastidores (Cauby Peixoto), Sob Medida (Fafá de Belém), Atrás da Porta e Tatuagem (Elis Regina), Sem Açúcar (Maria Bethânia), Geni e o Zepelim (ele próprio), Até o Fim (Nety Matogrosso). Não me lembro, no momento, de outras.
Em 1983, Braz Chediak filmaria Perdoa-me por Me Traíres, por sinal um dos filmes mais baratos da história do cinema nacional, baseado na peça homônima de Nelson Rodrigues. Nesse enredo, o homem traído pede perdão à mulher. Pode? De acordo com ele, Judith traiu, mas a culpa é dele. Quer dizer: ela está coberta de razão em traí-lo. E para musicar isso, como é que se faz? Recorreu-se a Chico Buarque e ele não decepcionou. Escreveu a magistral Mil Perdões, que Gal Costa gravou, naquele mesmo ano, em “Baby Gal”. (“Te perdôo porque choras / quando eu choro de rir / te perdôo / por te trair”). Descobri, inclusive, que Chico tem o poder de transcender o banal, o irrelevante, o anormal, o que é doentio para as raias da genialidade. Arrisco dizer que Chico é capaz de poetizar um piolho, uma cárie, uma unha encravada, uma menstruação irregular etc. Ele tem condições de escrever sobre qualquer assunto. Muito poucos conseguem isso.
Eu gostaria de escrever mais sobre Chico Buarque, sobre o Chico & Caetano, (particularmente sobre O Quereres, que ele errou, para delírio de todo mundo. “Não sei porque eu insisto nessa profissão! Estou dando tudo de mim!”), sobre as mulheres de suas músicas, sobre suas peças, seus livros, suas entrevistas, mas nunca o assunto Chico Buarque será dado por encerrado. Creio que já disse o fundamental. Que ele é um artista completo e quase não tem rivais na MPB. Salve Chico Buarque. Não aparecerá outro tão cedo que o supere. Aposto.
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Especialmente para a Profa. Maria de Fátima