Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo

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Em 1904, Kafka escreveu a seu amigo Oskar Pollark: “No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos ao trabalho de lê-lo? Para que nos faça feliz, como diz você? Meu Deus, seríamos felizes da mesma forma se não tivéssemos livros. Livros que nos façam felizes, em caso de necessidade, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser um machado para o mar gelado de dentro de nós. É nisso que acredito”.

Fonte: Uma história da Leitura de Alberto Manguel, p. 113

Genial e inesquecível - Os 100 anos do homem que inventou o teatro brasileiro

Nelson Rodrigues (1912 – 1980).
Fonte: Antônio Guerreiro/IstoÉ
Téo Junior [*]


Lembro-me da primeira vez em que ouvi falar em Nelson Rodrigues. Eu tinha 17 anos, cursava o 3° ano do ensino médio na Bahia e, estando na casa de uma colega, ela me disse que naquela noite um homem iria decepar o órgão genital dele. Fiquei entre espantado e maravilhado com tamanha coragem. Perguntei-lhe: “Tem certeza, Zélia?”. Ao que ela me respondeu: “Eu já assisti. É hoje! Assista e você vai ver!”. Estávamos em 2002, e a Globo reprisava “Engraçadinha”, em comemoração aos 90 anos do “genial e inesquecível” Nelson Rodrigues – assim era a chamada. A minissérie que revelou Alessandra Negrini havia sido apresentada pela primeira vez em 1995.

Minha amiga referia-se à cena antológica em que Silvio, personagem de Ângelo Antônio, resolve adquirir uma navalha para mutilar-se, assim que descobriu que mantivera relações com sua irmã. Sempre acreditando que Engraçadinha fosse sua prima, não suportou o golpe da triste revelação. O pai deles manteve, num passado remoto, um relacionamento com a cunhada, mas tratou de abafar o caso – afinal, era um deputado. Silvio e Engraçadinha jamais souberam que eram irmãos.

Tive a oportunidade de ler todas as peças de Nelson, ver quase todos os seus filmes e posso asseverar: nenhum outro escritor, nacional ou estrangeiro, me fascinara tanto. Quando terminei a leitura de “A Mulher Sem Pecado”, cheguei à conclusão: é esse. Nunca mais o abandonei.

Nelson é tão fabuloso que a fortuna crítica em torno de sua literatura é quantitativamente superior a tudo o que ele escreveu ao longo de 40 anos de atividade incansável em jornais, no teatro e no cinema. Ao lado de Jorge Amado, foi o autor brasileiro mais adaptado para o cinema, com estrondoso sucesso de público. “A Dama do Lotação”, direção de Neville D’Almeida, é hoje a 3ª bilheteria do nosso cinema. Fica atrás somente de “Dona Flor” e “Tropa de Elite”.

Apesar de grande parcela de seus fãs preferir “Toda Nudez Será Castigada” (direção de Arnaldo Jabor), considerada a melhor adaptação dele para o cinema, nenhum outro filme rodriguiano impactou-me tanto como “Bonitinha, mas Ordinária” (refiro-me à versão de 1981, com Lucélia Santos, direção de Braz Chediak). O ser humano reduzido a um abutre, ao dinheiro que pode comprar tudo, ao apego excessivo às aparências, à humilhação sistemática que alguém pode impor àqueles que lhe são inferiores, ao seu ver, simbolizado na pessoa do milionário Heitor Werneck, mostraram-me um mundo vil, imundo, cuja moral vai se deslocando aos pouquinhos para o estado de putrefação. Resta ao espectador sofrer.

Sim, porque a literatura de Nelson Rodrigues não comporta a alegria nem a felicidade. O sexo, o amor, o casamento, a viuvez, a loucura – tudo está indissociável da felicidade. As personagens vivem mergulhadas em permanente estado de tensão. Acredito que Plínio Marcos, Fausto Woolf e Antonio Carlos Viana beberam da fonte de Nelson, a julgar pelos ótimos livros que publicaram.

Anarquizando geral a “sacrossanta” família brasileira – da mais pobre, como a de Silene em “7 Gatinhos” à mais rica, como a de Herculano em “Toda Nudez”, Nelson defendeu a importância de um lar asséptico. Gritando a infidelidade e exibindo no palco, sem máscaras, a prostituição e o que ela acarreta, Nelson valorizou a virgindade e o amor eterno. Escrevendo a respeito de patologias de foro íntimo, da corrupção moral dos homens, da política que fabrica canalhas, da banalização do sexo, do racismo (leia “Anjo Negro”), Nelson fora de um moralismo violento e feroz.

O homem que grande parte do País dizia ser “neurótico” e “tarado” disse, certa feita, que era contra a educação sexual na escola. “Educação sexual tem de ser dada por um veterinário a cabras, a bodes, a vacas. O ser humano não tem de ser educado para fazer sexo. O ser humano precisa ser educado para amar. Eu sou do amor eterno!”.

Nelson não era uma metamorfose ambulante. Ele tinha aquela velha opinião formada sobre tudo. Jamais será esquecido, inclusive pelos detratores do teatro dele.

Obrigado, Nelson Falcão Rodrigues, pelo bem que sua obra me fez.

* Téo Junior é crítico do Jornal Cinform de Aracaju e colaborador desse blog.

Henrique Manuel Bento Fialho - Petardo anti-sonolência.

fonte da foto aqui
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Só há paz possível e algum alento à modorra cotidiana, na arte. Depois de uma semana sisífica volto a ler o Henrique M. Bento Fialho. Como sempre ele atira contra mim e as convicções bovinas um petardo anti-sonolência. Sua poesia é um despertar das ilusões, um chamamento às consciências. Vai dai que alguns, convictos panglosianos da normalidade social, não enxergarão grande coisa nesses versos. Tenho, porém comigo a plena convicção de que muitos daqueles que pressentem algo de tortuoso e desajustado na política, na sociedade e na cultura contemporânea sentirão neles uma verdade inconveniente. E são de inconvenientes contra as correntes que nos arrastam pela “torrente dos dias” que são feitos os versos desse português arisco ao convencionalismo. Ao contrário de seus compatriotas, Henrique suspeito de cada gesto da vida moderna. Sem maneirismo ou figuras obscuras sua poesia dispensa o vocabulário insólito “sobre amores-perfeitos,/ Cidades ardidas, noites melancólicas... para percorrer os caminhos da vida com a sinceridade que rareia em todas as esferas sociais. Implacável contra a complacência que reina nas relações humanas, Henrique, na contramão daqueles que não dispensam uma sinecura, sentencia: Prefiro um emprego honesto à suinicultura/ Dos salões nobres, das universidades vazias. Até conhecer a poesia do Henrique Manuel Bento Fialho eu não sabia que era possível escrever poesia com tanta agudeza e ferocidade de espírito.



Não quero ser poeta num país onde os poetas
Estão ao nível dos secretários de estado,
Escrevem com o giz remoído das unhas

Versos de encantar musas imberbes
E olham para o lado, fingindo que não vêem,
Sempre que passam pela própria sombra.

Prefiro um emprego honesto à suinicultura
Dos salões nobres, das universidades vazias,
Dos colóquios a meia-luz nos jardins da fundação.

Um emprego honesto pode ser: plantar
Cornucópias na testa do consumo, regar
Palavras a esmo, lavrar as alcatifas poeirentas

De uma livraria mainstream arrastando os pés
Das mesas carregadas de lixo, como arrastados
Vamos nós na torrente dos dias.

Ou talvez arrumar crises nas prateleiras da austeridade,
Enquanto do outro lado do mostruário
Os poetas do meu país escrevem sobre amores-perfeitos,

Cidades ardidas, noites melancólicas e coisas assim
Fodidas.

A utopia necessária

fonte: aqui
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Meus alunos questionam-me sempre sobre o verdadeiro valor da literatura. Eu não deveria, pela obviedade dos fatos, e pela posição em que eles se encontram, voltar a esse assunto. Porém percebo cada vez mais o imperioso da discussão, e julgo inevitável falar mais do mesmo. Então lhes digo: Não sei o verdadeiro valor da literatura, porém suspeito de algumas coisas sobre ela. A literatura aponta caminhos alternativos aos oferecidos pela realidade. Questiona o inelutável da existência e revigora as utopias quando todos insistem em afirmarem que o sonho acabou. Diz-se então assim, que ela intui um futuro diferente daqueles ofertado pelo mundo dos que cansaram de sonhar. Insubmisso, questionador, ela insiste em rotas inexploradas e abre picadas nas consciências insones. Isso já seria o suficiente para torná-la uma ferramenta indispensável ao progresso da sociedade, mas ela ainda nos oferece mais, muito mais. Dá-nos, malgrado nossos esforços em contrário, uma consciência crítica, civil e política, além de uma consciência da própria linguagem ao questionar o seu convencionalismo e apontar para suas potencialidades mais surpreendentes. Estão aí os Barros, Cabrais, Meireles, Leminkins  que não nos deixam mentir. Em um mundo marcado pelo fetichismo mercadológico ela ainda se constitui no único refugio possível de nos livrar da sedução do canto comercialesco, que nos intenta bestializar com sua sordidez. Em um mundo poliédrico ela nos aproxima de outras realidades desmitificando o desconhecido e evitando assim os males da xenofobia. Quereis saber mais sobre isso? Leiam um livro e tirem vocês mesmo as suas próprias conclusões.