FILHOS, CONFORMEM-SE: SEUS PAIS NÃO FORAM PIORES DO QUE O DE FRANZ KAFKA


“Acho Kafka mais difícil de ler do que Joyce”. O comentário poderia intimidar a uns, menos a mim, por mais que tivesse partido de Paulo Francis, em seu “Diário da Corte”. Acabei de ler um dos textos mais significativos e agradáveis da literatura mundial, embora o autor não tivesse a pretensão de ser uma carta particular dessa um escrito literário – e, por isso mesmo – fascinante. Trata-se das “Cartas ao Pai”. Foram 50 folhas escritas no espaço de dez dias. É um texto pequeno. Transformado em livro, juntamente com pequenas biografias, posfácio etc., não chega à página 100.

Eu paro um momento e começo a olhar pra Kafka, na foto da primeira orelha. Para os padrões de 1924, até que não era de se jogar fora. Aquelas orelhas emborcadas lhe conferiam um certo, digamos, charme. Mais parecia um menino carente e sofrido. Antes de ler o livro, pensei olhando sua foto: “Não deve ter faltado mulher pra esse cara”. Pois não faltou, mesmo. Duas moças topariam se casar com ele, no duro, caso a besta do pai dele permitisse.

Alguns podem achar ser esta uma carta rancorosa. Não parece. É toda a verdade e todo o cinismo do pai demonstrado de maneira sucinta e didática. Um texto leve e muito bem escrito. Estranha, porém, a maneira como ele se refere ao pai, sr. Hermann Kafka. Ora “querido”, no início – mas no decorrer da carta, sempre “você”. Kafka chega a dizer que se sentia um mané perto do pai. “Da sua poltrona você regia o mundo. Sua opinião era certa, todas as outras extravagantes”. Bruto, irônico, com um humor cáustico, a personalidade do pai é traçada em pormenores que prendem o leitor do começo ao fim. Humilhou-o, porém, uma atitude do pai: um belo dia, este jogou-lhe na cara que outrora havia passado privações, que trabalhara dia e noite, para dar-lhe um sustento digno, enquanto Kafka desfrutava desse trabalho, “vivendo à larga”. É duro ou não é?

Medo – Toda a carta fala do medo que Kafka, desde cedo, sentia e que o acompanhou por toda a vida. O pai sabia disso e quis descobrir a razão. A resposta está logo nas primeiras folhas. Talvez a grossura do pai quisesse transferir a ele segurança. “Você só pode tratar um filho como você mesmo foi criado, com energia e cólera. (...) Nesse caso, isso lhe parecia adequado, porque queria fazer de mim um jovem forte e corajoso”. Resta agora saber se isso foi bom para o filho. Os pais geralmente fazem as piores m... acreditando serem atitudes excelentes aos filhos. Só que não são coisíssima nenhuma.

Vergonha e casamento – Proprietário de uma loja, o patriarca tratava a todos os empregados – sem exceção – como cachorros pulguentos. “Isso muito me envergonha”, escreveu o filho. A capacidade de sentir a dor do outro o fazia sofrer. Foram inúmeras ocasiões em que o pai expôs Kafka às decepções, muitas vezes em público. Pois bem: Kafka achava que um homem tem de ter mulher e filhos e sossegar. Engraçou-se com duas moças. Noivou, desnoivou, ficou com outra, gostou de uma outra etc., mas o pai jamais quis um casamento. Outro dia, esse bronco ofendeu uma de suas noivas porque ela era de condição inferior à deles. “As duas moças foram de fato escolhidas por casualidade, mas extremamente bem escolhidas”, Kafka disse.

Como meu “pai” Nelson Rodrigues, o grande escritor fora tuberculoso, internou-se num sanatório e lá mesmo morreu, com 40 anos de idade. Vale a pena conferir sua obra, das mais inquietantes da literatura universal, como “O Processo” e “A Metamorfose”. O único sentimento que tenho é saber que a carta jamais fora enviada, por razões até hoje no campo das hipóteses. Faleceu em 1924 e seu túmulo se encontra num cemitério judaico em Praga, capital de República Tcheca e ponto final.

Lira dos Oitenta e Cinco anos

No último dia 16 o escritor português José Saramago completou 85 anos de vida. Na esteira das comemorações sopramos ainda velinhas para os 25 anos da publicação de Memorial do Convento (1982) livro que tornou o escritor um nome incontornável.

Esse fato passou despercebido por nossos antenados cronistas literários, que não deram uma nota sobre o aniversário do até hoje único autor em língua portuguesa, ganhador do prêmio Nobel de literatura. E lá se vão nove anos.

Seria esse fato um simples lapso ou uma demonstração de desprezo pela obra do mais original e criativo escritor da atualidade? No Brasil, aparentemente, o autor de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, sempre gozou de muito prestigio. Apesar de muitos críticos possuírem um olhar enviesado, para o modo pessoal e intransigente com que Saramago trata sua obra.

Saramago, por exemplo, não permite “traduções” do português, habitualmente praticado em Portugal, para o português do Brasil. Sua escrita, para preservar certa oralidade não se vale dos parágrafos e pontuações comuns em todos os textos. As falas dos personagens se entranham em meio a narrativa, distinguidas só por iniciais maiúsculas. Salvo os devidos excessos isso não é um grande empecilho a leitura de seus livros, sempre carregados de muitas reflexões sobre o mundo atual.

As queixas dos críticos contra a forma estilística adotada por Saramago não rendeu do público o mesmo espanto. Mas valeu do autor certo estranhamento de como o exame de sua obra está sendo superficial. Não raro essas querelas desviam o espírito das discussões verdadeiramente mais valiosas e tendem, erroneamente, a manter o público ainda não leitores do autor, numa distância respeitável.

Quem, no entanto, teve o prazer de lê-lo sabe que o que realmente vale em sua obra é o espírito inconteste, e permanentemente viçoso de seu questionamento à ditadura da normalidade. Suas obras alertam sempre para algo suspeitoso e fingido das instituições, dos homens, da moral e do encolhimento perante o alheio.

Saramago continua essencial e seus livros são incontestavelmente a centelha de lucidez em meio à loucura desse mundo.

Em arte toda revolta é um ato de inteligência

[Em cima: A Virgem Castigando o Menino Jesus perante três Testemunhas: A. B. (André Breton), P. E. (Paul Éluard) e o Artista (1926), de Max Ernst.]