Certezas rompidas- Benjamin Clementine - Condolence | A Take Away Show

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De todas as expressões artísticas, a que menos me entusiasma é a música. Posso ficar meses sem ouvir uma única canção e assim mesmo não dar pela falta dela. Não fossem os cacofônicos cantores midiáticos, que lamentavelmente fazem as graças dos carros de sons-publicitários, e nem desconfiaria de que vai música no mundo. Como veem, não sou aficionado pela música. Prefiro antes um livro, um filme ou mesmo as horas de contemplação às obras de arte e aos trabalhos fotográficos que vou descobrindo enquanto cultivo o silêncio.

Nasci, a julga pelos hábitos modernos de andar com fones de ouvidos metido à orelha por todos os cantos, com o ouvido torto aos sons que escapam as rádios, tevês e aparelhos eletrônicos que seduzem a todos. Vai daí que para o mundo contemporâneo meu ouvido é inútil. Prefiro assim. Antes o silêncio. O mundo é-me uma coisa escandalosamente ruidosa, onde estar impenetrável aos vestígios de sons, parece impossível. Por isso aprecio o lar.

Depois do trabalho, o que mais me apetece é encontrar as paredes, que me isolam do burburinho mundano e me mantêm imunes aos ruídos que fazem do mundo uma caixa de som ensurdecedora. No lar sinto-me com a sensação de estar em um mosteiro em que gostaria de estar, cultivando o que minha fantasia monástica vai delirando. Nele posso conter o tumulto e isolar os sons que não me agradam e dedicar-me ao exercício da quietude ante um mundo cheio de estultícia.

Mas de repente também sei sentir a necessidade de ouvir música. Aí saio de minha hibernação para dar-me a chance de ver se endireito o ouvido. Nessas horas raras, troco a quietude das coisas pelo seu oposto. Em vez do silêncio, o alarido dos anjos caídos soa-me inebriantes. Vou-me embora no som e perco-me nas horas. De repente, dissipam-se minhas ilusões de silêncio e os ruídos do mundo rompem meu isolamento, trazendo consigo outros sons e não aqueles habituais que os médias vão espalhando como ratoeiras pelos caminhos das pessoas.  Tais horas são especialmente empolgantes quando acompanhadas de Benjamin Clementine empunhando seu piano em meio a um biblioteca enquanto inflama o ar com sua voz inigualável.

No caminho de Brasília

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A foto é velha, mas dar o que pensar. Ou assistimos a vê-la o definhar completo da moralidade política, ou os caminhos para Brasília se converteram em caminhos de Damasco. Uma das duas alternativas há de explicar como em política nacional o canalha de ontem é o insuspeito de hoje. 

Ateísmo das coisas vãs



"A MORTE DOS DEUSES

A primeira das quatro biografias reunidas na Vida de Paulo Leminski é dedicada ao poeta negro Cruz e Sousa (1861-1898), filho de escravos adoptado pelo proprietário de seu pai, um mestre-pedreiro, que contra todas as probabilidades aprendeu a ler e a escrever. É no entretanto da análise poética levada a cabo por Leminski, sempre atenta ao detalhe e minuciosa nos aspectos que julgaríamos menos relevantes, que encontro este argumento fortíssimo contra o meu ateísmo. Fala-se, refira-se a título de introdução, na capacidade que a cultura negra teve para resistir a um violento processo de aculturação que, por exemplo, praticamente exterminou a cultura do índio. Estamos no campo da citação da citação:

«No jornal, uma entrevista recente com o maior teatrólogo da Nigéria, um intelectual de esquerda:

— Os brancos nos trouxeram coisas de valor. Como o seu pensamento científico e filosófico, incluindo o marxismo. Mas o preço que temos que pagar é alto demais. O ateísmo é a morte dos deuses. Com a morte dos deuses, vem a morte das danças, que são para os deuses. Com a morte da dança, vem a morte da música, que acompanha as danças. Ao adotarmos filosofia ateia, estaremos matando toda a árvore da nossa cultura. Um marxismo, para nós, não pode nem deve negar nossas crenças. Porque estaria negando a nós mesmos».

Imagine-se, por arrasto, o que seria da poesia com a morte da música. Esta inquestionável ligação da produção artística ao culto do sagrado tem uma enorme força, sendo indesmentível em termos arqueológicos e ressuscitando o velho problema do ovo e da galinha: primeiro os deuses ou a arte? Eu tendo a acreditar que foi a arte que gerou os deuses, mas mesmo nesse domínio reconheço não poder escapar ao pântano da fé.

Produtos da fantasia, por certo, mas vinculados a uma necessidade física, uma necessidade até de sobrevivência, os deuses, enquanto personagens fictícias do reinado metafísico, expressam (a palavra é mesmo esta) um modo de olhar para o mundo, uma perspectiva, um modo de sentir o lugar do homem na vasta geografia natural, expressam um modo de estar com a Natureza que, nas suas múltiplas variantes, se resumiu a tentar dominá-la (monoteísmos) ou simplesmente aceitá-la, venerá-la, procurar com ela um estado de fusão integrador (paganismos).

Daí que o grande desafio do ateísmo não seja negar os deuses, como quem se ocupa de negar o que à partida considera inexistente, mas antes empenhar-se em impedir que o deus único das três grandes religiões se imponha pela força a todo e qualquer culto do sagrado que não se reconheça na arquitectura fascista dos preferidos e dos eleitos. No fundo, trata-se de garantir que o motivo para a dança, para a música, para a poesia se mantenha vivo."

Daqui: Antologia do Esquecimento 

O gigante de pés de barro

Foto: William Gedney
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Por alguma razão, que a sociologia pode melhor explicar do que eu, a fotografia Americana do século XX tinha um profundo interesse em dar a ver a vida de jovens e crianças. Quase sempre esses registros, mostram uma América longe dos ideários propagandísticos de terra da oportunidade. São ao contrário flagrante do gigante de pés de barro.

Tempos delirante


Foto: Elliott Erwitt
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Entendo que as pessoas creditem ensinamentos, valores e outros fingimentos aos vídeos que coalham no WhatsApp. É que em nosso tempo é sempre preferível apegar-se a ilusões, do que se sentir sem valor de mercado, por não andar cultivando a última merdola da moda. 

Um mundo selvagem que não perdoa nem a infância

Foto: Urs Odermatt Windisch, 1958
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Quando eu era criança os meninos e meninas adoeciam. Tínhamos perebas, ínguas, vermes, manchas embranquecidas nas unhas, que se dizia ser sinais de problemas no fígado. Verrugas espalhavam-se pelas mãos e atingiam os joelhos, dando aspecto asqueroso aos moleques mais travessos que se machucavam. Em casos mais graves, as crianças nasciam com problemas de ortopedia e tinham de usar umas botas esquisitas, que lhe davam um caminhar robótico.

Hoje as crianças também adoecem, porém, estão bem longe de sofrerem dos mesmos males da minha época. As crianças de hoje têm doenças com nomes esquisitos e sofrem de males da mente. Talvez por isso a especialidade médica que melhor as assiste, seja a psiquiatria. As crianças hoje sofrem de "hiperatividade", "déficits de atenção", "Aspergers", "autismo", “depressão profunda”, e outras perturbações correlacionadas. Antes desse novo tempo, cheio de novidade, jamais havíamos ouvido falar de psiquiatras.

Como curar essas moléstias? Em minha época tínhamos toda uma ciência popular a qual recorriam os pais para socorrerem as crianças dos seus pequenos males. Curávamos vermes entupindo a criança com semente de abóbora e depois fazendo com que ela sentasse de cócoras numa bacia d´água morna. Em poucas horas, verme algum seguia molestando os meninos bojudos. As verrugas eram facilmente removidas quando as crianças eram orientadas a não mais contarem estrelas apontando com o dedo para o céu. Agora, como é que se cura Aspergers? Tem cura essa doença? Quais as suas causas e por que as crianças são afetadas por ela?

Não sou nenhum especialista. Não tenho nenhuma autoridade para falar do assunto. Mas imagino que todos esses males não se deva a outra coisa, senão as pressões sociais as quais as crianças estão submetidas. Não há mais espaço livre para viver a infância. Nem bem nascem, as crianças já têm responsabilidades e lhes são exigidas que as cumpram. Sob pena de terem o seu futuro comprometido, pais zelosos empurram os filhos às aulas, que cada vez se iniciam mais cedo. Não contentes com essas horas de entrega aos estudos, quando os pequenos voltam à casa vindo das escolas, têm outras obrigações que os esperam. São levados ao cursinho de inglês, as aulas de natação, balé, música, teatro... nenhuma de suas horas são gastas com a tarefa de ser criança. Nenhum de seus momentos mais ternos são vividos com os pais. Antecipa-se o mundo adulto, com seus compromissos e responsabilidades cada vez mais cedo às crianças.  

Ontem como hoje, uma Igreja duas crenças.

Foto: Rogério Soares - Tríptico 

Há aqui qualquer coisa que pensar.

Aurel Bauh. As três Graças, 1937. 

Leonard Nimoy. The Full Body Project.
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Quando olho essas fotografias, não estou apenas pensando no contraste, nos volumes, nas mamas apontando para direções contrarias, nas discrepantes proporções dos corpos, na pele de umas e outras, enfim, nas formas densas e lineares que distinguem os corpos. Quanto olho essas fotografias, penso num certo ideário de beleza estampado na primeira que, estando ultrapassado, não deixa de me causar espanto e admiração.

Falo ultrapassado porque assistimos a um tempo do enobrecimento de tudo. Um tempo em que alguns, ungido de modéstia, relativizam as coisas, pensando com isso estar corrigindo as más consciências do mundo, que tendem a polariza as singularidades. Não deixa de ser estranho que tudo tenhamos que subordinar às causas. Requer nossa época um certo decoro ao expressar nossos gostos. Corre-se, sem querer, o risco de ofender quem temos em conta de simpático, pelo simples fato de crer no ideário grego das Graças.

Razões para se pensar a sério sobre a televisão

Foto: Arthur Steel
«A televisão provou que as pessoas preferem olhar para qualquer outra coisa, a olharem-se entre si.»
— Ann Landers(Esther Pauline "Eppie" Lederer), 1979

«A televisão fez a ditadura impossível, mas a democracia insuportável.»
— Shimon Peres, In Financial Times, 1995

«A televisão trouxe de volta o homicídio ao lar, onde pertence.»
— Alfred Hitchcock, In Observer, 1965

«O povo americano não acredita em nada até ao momento em que aparece na televisão.»
— Richard Nixon, Newsweek, 1994 (Nixon, estimava que 80% dos americanos obtinham toda a sua informação através da televisão)

«O primitivismo da televisão cansa.»
— Claude Lévi-Strauss

«É quase impossível dizer a verdade na televisão.»
— Malcolm Muggeridge, Christ and the Media,1976

«A masturbação é a televisão do homem que pensa.»
— Christopher Hampton, The Philanthropist, 1970

«Alguns programas televisivos são gomas de mascar para os olhos.»
― John Mason Brown, in Interview, 1955

«Encaremos os fatos, em televisão não existem mulheres simplórias — destituídas de relevo.»
— Anna Ford, In Observer, 1979

«A televisão disseminou o hábito da reação instantânea e estimulou a esperança de resultados imediatos.»
— Arthur M Schlesinger, Jr. In Newsweek, 1970

Escusa


Estou certo de que uma vida não chega, para realizarmos todos os nossos sonhos. Digo isso, é claro, para negar em mim a fraqueza de não ter chegado às portas das grandes realizações. É simples culpar a vida pelos tropeços. Eximimo-nos assim da culpa pelas derrotas, e seguimos fingindo autocomiseração. Quando não temos feito o que deveria ter sido feito, entregamo-nos à culpa ou às piores imposturas.

Na esperança de resgatarmos alguma dignidade da lama, fingimos que ela também pode ser purificadora, só para não ter que dormir com a realidade. Não restando nada mais, nem nenhuma outra desculpa que nos dispense da franqueza de se saber menos, nos apegamos a última das convicções: a de que a vida não é nunca perdida, enquanto não é terminada.

A liberdade ou do delírio literário de ontem e de hoje


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Stalin corrigia páginas e páginas de Gorki, metendo nas histórias o que o escritor não era “capaz” de meter. Quando não havia submissão às críticas do generalíssimo, os escritores soviéticos deixavam o mundo da literatura, para habitar o esquecimento siberiano. Alguns de lá trouxeram mensagens sobre os serviços de “reaprendizagem literária”.

Outros com menor sorte de reaver-se com a nova crítica, não chegaram tão longe, e antes mesmo de sentirem as lições transformadoras da estética stalinista, encontraram com o barqueiro Caronte, que na época, trabalhou em regime de serviço extra, para dar conta dos enviados pelo governo do povo, à mais nova morada dos escritores.

Na China o camarada Mao não fez por menos que seu colega. Querendo emendar o que chamava de “desvio burguês” que empestava a literatura chinesa de então, o grande líder, que também sabia tudo de literatura, correu com os escritores para os rincões chineses, onde eles puderam depurar a criatividade, enquanto atolavam as mãos nos arrozais e fertilizam as suas novas consciências com esterco, ao lado dos verdadeiros artistas da pátria, o povo.

O barbudo cubano aprendeu as lições de seus antecessores político-literários. Depois de derrubar o ditador Fulgêncio Batista e instalar um regime de igualdade social, ele se apercebeu que, o seu regime seria, tanto mais vigoroso e duradouro, quanto menos escritores canhestros estivessem a entulhar a literatura de dizeres e fazeres que nada serviam a emancipação do povo. Com ares senhoriais ele construiu as casas de correção, em regime interno, onde os escritores aprendiam que não se podia querer tudo e mesmo assim estar de acordo com o novo pensamento.

De tempos em tempos uma nova onda reconduz os literários ao bom caminho. Não temos mais os líderes da envergadura dos grandes comunistas no leme de nossa precária embarcação. Mas quis a sorte, que em meio a escassez de timoneiros tarimbados, uma outra força viesse ao nosso encontro, e nos reconduzisse às históricas políticas educativas de instrução literária. Essas novas forças atendem por variados nomes. Em comum, elas possuem o ímpeto dos timoneiros do passado de devolverem ao curso certo, as histórias que os literários vão delirando.