A DÚVIDA

Eu não queria crer, mas havia evidências, muitas, irrefutáveis e desconcertantes. A maior e mais perturbadora era física. Irremediavelmente marcante e por demais constrangedora. Parece até irônico, se referir a isso, como marcante, quando justamente não havia marca alguma que a distinguisse. Ocorria que, onde nas outras pessoas existia um sinal indelével de sua filiação maternal, em mim havia a prolongação da pele, que desde aquele momento até hoje, cresce, flácida e enrugada até não poder mais, denunciando os muitos anos que esse fato me assola. Nenhum sulco, marca ou sinais, que desfizessem as minhas dúvidas cresceram em mim. Assim apurei que estava só, e que minha existência era questionável, ao menos da maneira em que as outras pessoas constituíam a existência. Divorciado da maioria dos homens, a única cicatriz que insistiam em mim, era a da dúvida, parideira de toda sorte de pensamentos, inquietante moléstia, sórdida mazela dos emparedados. Pertencerei eu mesmo a esse mundo? Será certo que essa senhora da foto embotada, que me carrega pela mão, de fato foi a que me deu a vida e me precipitou no mundo, ou serei filho do amor que há entre Deus e o Diabo. Farsa é tudo uma farsa. Era a única coisa que me ocorria. Apartado do mundo e dos homens eu não conseguia repousar tranqüilo sabendo que era diferente.

AS MODERNAS TEORIAS RACIAIS

(fonte: Jornal Daily News)
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Tempos atrás, assisti a uma palestra de um professor universitário, que falava de forma inflamada, sobre a evidente discriminação racial no filme Matrix. A obviedade do fato decorria, segundo o ilustre professor, da composição do elenco, que mais uma vez, segundo ele, seguia uma "hierarquia racial" que desprestigiava a figura dos negros. Enquanto Keanu Reeves (um legítimo representante da raça branca) ocupava o papel principal, a Laurence Fishburne restava o papel de Sancho Pança, o fiel escudeiro do herói que guiará as pessoas na guerra contra os computadores. Será mesmo que os irmãos Larry e Andy Wachowski são grandes racistas e que a escolha de Keanu Reeves para o papel principal definiria por extensão os lugares de brancos e negros na sociedade, eu me peguei questionando. Morfeu, personagem de Fishburne, sabe todos os segredos de Matrix, no entanto, ele não tem a força para destruir o sistema, tem que encontrar alguém que possa fazer isso por ele e por toda a raça humana, assegurava o professor. Baseado nessas ideias o professor argumentava que esse filme era uma grande metáfora da disputa racial que vivemos hoje. Apesar do argumento rasteiro o professor foi calorosamente aplaudido ao final de seu brilhante, genuíno e hipnotizante pensamento, que sinceramente achei um tanto forçado e muito simplista. Reduzir uma discussão tão profunda a razões tão estreitas dão a medida de como anda os ânimos e a disposição de muitos para debater com seriedade, equilíbrio e insenção a delicada e infindável questão em que muitos decidem racializar tudo o que veem pela frente. A prova mais evidente de que o professor se precipitou em seus argumentos, e de como o seu pensamento ao invés de servir de base para discussões serias, patina num lodaçal de preconceitos e juízo pré-moldados, eu tive essa semana quando o jornal americano Daily News, divulgou uma lista com nome de vinte e seis atores e atrizes que deixaram de embolsar muito dinheiro e alguns prêmios importantes como o Oscar, por recusarem protagonizar filmes que depois se tornaram fenômeno de crítica e público. Entre tantos nomes o que mais me chamou a atenção foi o de Will Smith que havia declinado do convite dos irmãos Wachowski para estrelar justamente o filme que o professor havia acusado de racista, por não ter como protagonista um negro. Baseado em seus próprios preconceitos o professor julgou ter achado o alvo perfeito para ilustrar o quanto são necessárias políticas de reparação racial, que tenham como meta evitarem distorções como essas, em que negros não são escolhidos para papéis no cinema, e possam equalizar os espaços entre brancos e negros nas telas. Na ânsia de racializar tudo o que ver pela frente os ativistas do Movimento Negro esquecem que nem todas as escolhas de protagonistas são baseadas em critérios raciais como ele julga, e sim, na livre iniciativa e na adequação do personagem ao perfil do ator. A continuar como estamos até Hamlet será severamente questionado como mais uma prova viva da segregação racial. A alegação é claro será que o ator princial era branco e não negro.
(A lista completa dos artístas e dos respectivos filmes que eles se recusaram a protagonizar estão no site do jornal, aqui).