Querendo meter alguma ordem à minha
cabeça para fazer de meu voto uma coisa útil, esforcei-me em ouvir os
candidatos à presidência. Assisti debates, li acusações e contra-acusações.
Avaliei propostas, pesei históricos, mas, mais do que isso, observei nos
candidatos, seu comportamento de campanha. Do que vi e li restaram-me a
convicção de que dissimular, enganar, fingir e fechar os olhos aos defeitos da
sujidade dos partidos, a ponto de apreciar e admirar grandes vícios como
grandes virtudes, foram as ações mais vitoriosas nessas eleições.
29
de
setembro
Renúncia
Foto: Lucien Clergue, 1965
.
"Fiz a aprendizagem da minha
condição e, com passividade absoluta, acatei leis antigas. Aprendi o meu papel
no casamento e na cama. Fui uma deusa morta, não uma mulher viva. Distribuí
sorrisos, fiz sopas, massas guisadas, bolos de erva-doce, lavei copos e pratos,
estendi cuecas, meias, lençóis; à noite, abri as pernas, arfei de cansaço e
aborrecimento, recebi o esperma conjugal, virei-me para o lado e adormeci. Mas
a máscara ainda não estava enterrada na carne do meu rosto. Numa noite de
Verão, raspei os nós dos dedos na parede até os ver sangrar, mordi os braços,
cuspi no espelho, arranquei a roupa do corpo e, assim nua, fugi. Uma
desconhecida encontrou-me no largo da aldeia, encolhida junto de um canteiro de
goivos. Levou-me para casa, lavou-me as feridas. Depois, sem nada perguntar,
explicou-me o óbvio: não há maior tragédia na vida de uma mulher do que a
renúncia; antes o desespero e a loucura."
Invocando imagens dolorosas, Ana Cássia
Rebelo, reclama um desfasamento da condição do feminino às práticas de
submissão a um modo de vida opressivo. Seus textos me
encantam. Sua escrita me desenfastia da realidade e me proporciona perspectivas
novas entre coisas mínimas.Como é bom lê-la. Como é bom encontrar
uma escritora de verdade.
Celebração a liberdade.
Walt Whitman celebrou em sua literatura
a liberdade, a espontaneidade, a rebeldia, o sofrimento, contra uma ordem
institucional dominada por valores hipócritas e uma racionalidade utilitária.
Mais importante do que o prazer, era a liberdade e a possibilidade de sermos
nós próprios nem que fosse à custa de sacrifícios e sofrimentos. Fernando
Pessoa, discípulo confesso de Whitman celebrou a sua lição com um poema
arrebatador que em tudo dignifica os ensinamentos do mestre.
SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN
(...)
Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali
sentir de mais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos
encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e
mecânica
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou
se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus
versos,
Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça p’ra baixo, pendurado numa espécie de
estabelecimento,
No tecto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do tecto da tua intensidade inacessível.
Abram-me todas as portas!
Por força que hei-de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu franzino e civilizado, meto dentro as
portas,
Porque neste momento não sou franzino nem
civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso,
querendo passar,
E que há-de passar por força, porque quando quero
passar sou Deus!
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui p’ra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes,
souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá
a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!
Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao
fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
deixa-me ir...
É comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra
Infinito...
Prá frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar
com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer
coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com
isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o
corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por
baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai
bater,
De me (...)
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade
tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o
acabado,
E tudo para te cantar, para te saudar e (...)
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os
astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
E (...)
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstracta do corpo fazendo maelstroms na
alma...
Arre! Vamos lá prá frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá prá frente... Não
faz diferença...
Vamos lá prá frente
Vamos lá prá frente sem ser para parte nenhuma...
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?
Pum! pum! pum! pum! pum!
Agora, sim, partamos, vá lá prá frente, pum!
Pum
Pum
Heia...heia...heia...heia...heia...
(...)
Desobediência civil
O demencial modo de vida americano, calcado
no trabalho para o consumo (incensado como modelo de civilização e querido por
todas as sociedades modernas) teve em Henry David Thoreau a mais franca das
oposições. Sobre os escritor de Thoreau basta dizer que influenciou o
pensamento pacifista de Gandhi e fundou as bases da consciência ambiental
contemporânea. Seu livro - Walden ou, A Vida nos Bosques - é um manifesto
contra a sociedade industrial e um libelo contra o consenso do American Way of
life. Leitura obrigatória para quem pensa o mundo sem porteiras.
"Fui para os bosques viver de livre vontade,
Para sugar todo o tutano da vida…
Para aniquilar tudo o que não era vida,
E para, quando morrer, não descobrir que não
vivi!"
— Thoreau
O código
Foto: Gordon Parks, Alunos muçulmanos,
Chicago, Illinois, 1963.
.
As privações não aparecem na fotografia;
as hierarquias não aparecem nas fotografias; as pessoas não aparecem numa
fotografia, apenas vemos os corpos sujeitos a um código; mas as sugestões
virtuais desses corpos podem bem ser induzidas pelo fotografo a instigar a
imaginação, a visão das privações, hierarquias e outros tantos males. Numa
época em que as imagens se tornaram quase que onipresentes me interessa a
fotografia menos como documento histórico, álbum de família e registro
narcisistas. Interessa-me mais a fotografia enquanto enigma.
O popular no erudito
.
Em todas as épocas, a cultura popular
nutriu com um veio riquíssimo o manancial que alimentou a genialidade de
grandes poetas e artistas de todo o mundo. Do Renascimento com Rabelais,
Shakespeare, Cervantes, passando pelo Neoclassicismo inspirado nos mitos
gregos, do Romantismo até o Modernismo nenhum movimento literário ignorou as
contribuições da cultura popular. Incorporando elementos do folclore e da fala
regional, fundindo imagens originais, ritos e lendas, a literatura dos grandes
mestres perenizou as grandes manifestações culturais e de quebra vitaminaram
com a força da imaginação venerável dos povos, a sua própria literatura. A
recente reedição das obras completas do gaúcho Raul Bopp atesta a força da
cultura popular e sua permanência na cultura como um todo. Bopp é autor do
poema épico Cobra Norato (1931), inspirado em uma das mais conhecidas lentas do
folclore amazônico. Esse poema, segundo Drummond, é um dos grandes projetos
poéticos do modernismo Brasileiro. Alguns atribuem a ele o feito de ligar o
movimento Modernista ao restante do Brasil.
28
de
setembro
As lições de Ulisses
.
O dramático retorno de Ulisses à Ítaca é
cheio de reveses. Tendo vencido todos, ele ainda haverá de enfrentar o maior
deles, a reconquista de sua casa assediada por forasteiro que cortejam a sua
esposa. Disfarçado, pelas razões que todos conhecem, ele terá que provar quem é
para retomar o seu posto. E a que expediente ele recorre para fazer isso? Ele
invoca o passado. É a sua vida pregressa ao cerco de Troia, às suas memórias de
infância, as experiências de vida ao lado de sua mulher que o permitirão
penetrar na sua terra e lhe assegurar as últimas vitórias sobre os usurpadores
de seu trono. A sua velha ama reconhece-o graças a uma cicatriz que tem desde
criança, Penélope reconhece-o devido a um segredo que só eles partilham a
respeito da construção da sua cama, o pai reconhece-o quando o filho começa a
nomear os nomes das árvores que aquele lhe ensinou quando era criança. E não
esqueçamos Argos, o seu fiel cão. As aventuras de Ulisses partilham conosco a
ideia de que a construção sólida de um futuro está intimamente ligada a
valorização e reconhecimento de nosso passado. Haverá sempre um perigo a nos
rondar cada vez que nos esquecermos do nosso passado. A nossa identidade, o
nosso sentido de futuro está assegurado pelas memórias que temos de nossa vida.
Perder a memória é perder o sentido de quem somos. Sem isso não poderemos jamais
imaginar para onde vamos e qual o propósito de nossa vida. Além disso, nossa
terra estará sempre assombrada por ameaçadores intrusos sempre dispostos a nos
deliberar os caminhos de nossa existência. Só há uma maneira de defendermos a
nossa terra, tomar posse de nossas memórias e assegurar a sua perpetuação.
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