À volta da fogueira

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Muito antes da luz elétrica, do livro, das escolas, da escrita, era no escuro da noite, entre o clarão miúdo da lamparina, em consórcio com a lua, que mal tangia as sombras, que pais reuniam os seus filhos e amigos da comunidade para contar histórias. Na comunhão do círculo brotavam histórias que descreviam e exemplificavam conceitos morais.

Entre as ocupações domésticas e o fiar de tecidos, as mães também empregavam as histórias nas funções de entreter e instruir os filhos. Fazendo isso, elas talvez não imaginassem, mas também estavam transmitindo valores, induzindo comportamento, alimentando a fantasia das crianças na superação de seus limites.

São através das histórias que os homens organizam as suas sociedades. São as narrativas que orientam a compreensão do homem sobre si mesmo e sobre os mistérios do mundo. Diferentes experiências, que contrastavam com as suas próprias, ajudaram o homem na construção do mundo. Através de diferentes papeis, vive-se o outro, e testemunhamos as alegrias e os dessabores do mundo.

Usando uma linguagem simbólica os contos, lendas, mitos, que pais e mães nos contaram, promovem uma descoberta com o essencial das coisas. A realidade, pelo contrário, é o encontro com a aparência. “Por trás de todas as histórias de casas assombradas” escreve Marina Colasanti em seu fabuloso livro Fragatas para Terras Distantes:

 “há uma única e grande história, a do pequeno ser humano enfrentando corajosamente sua finitude.... onde as palavras nos contam que a casa está vazia porque ninguém se atreve a enfrentar o fantasma, o reverso das palavras nos diz que quem não enfrenta seus medos não é dono de si, não se habita. E quando as palavras nos relatam como a personagem decide assumir a casa, enfrentar o fantasma e derrota-lo ao fim da história, lemos por trás delas que a coragem é possível, que nossa vida nos pertence na medida em que enfrentamos a morte, até o fim daquela breve história que é a nossa”. (COLASANTI, 2004, p. 20).

A arte de saber ouvir, já nos ensinavam os antigos, é a antecâmara do conhecimento.

No entanto, mesmo tendo tantos valores, as histórias hoje são, ou totalmente negligenciadas como fontes de instrução, ou são mutiladas para atenderem a um determinado e preguiçoso modo de interpretação do mundo onde as rugosidades da vida não cabem.

Num tempo de desintegração das identidades, a cultura de resistência da memória, assume, cada vez mais, um papel importante na construção e afirmação das identidades coletivas, que sofrem, como consequências das ações da suinocultura televisiva, do entretenimento da indústria cultura e das políticas que se identificam com uma certa esquerda culpada, um desbotamento de suas inequívocas potencialidade de ancoragem das estruturas de identidade, que se recusam o processo de homogeneização e pasteurização impostas pela cultura de massa.  


Um comentário:

Ana Seerig disse...

"Muito antes da luz elétrica, do livro, das escolas, da escrita, era no escuro da noite, entre o clarão miúdo da lamparina, em consórcio com a lua, que mal tangia as sombras, que pais reuniam os seus filhos e amigos da comunidade para contar histórias. Na comunhão do círculo brotavam histórias que descreviam e exemplificavam conceitos morais."

É exatamente disso que sinto falta, Rogério: desse momento em família, seja para ler, contar causos do dia a dia ou meramente conversar. Tive sorte porque, na minha infância, minha mãe, que trabalhava o dia inteiro como professora, dedicava um tempo à noite para nos ler histórias ou, quando aprendemos a ler, para nos ouvir. Eu via como uma atividade tão natural então e hoje percebo que era uma raridade. Esses momentos me ensinaram o apego aos livros, o prazer da leitura, a importância do falar e, especialmente, do ouvir. Hoje as coisas estão impessoais demais e, o pior, apressadas em demasia. Poucos têm tempo para os filhos, que dirá para ler ou conversar com eles. Mas o que me chateia mesmo é não ver perspectiva de mudança positiva, aliás, tudo me parece ter tendência a piorar...

ÓTIMO POST!