CORAÇÃO VAGABUNDO

Quando fala o coração de Maysa Matarazzo

Terminada a minissérie "Maysa - Quando fala o coração", o que se comenta é a disparidade entre o que foi apresentado e a biografia da cantora Maysa - que lhe deu origem. (Quem leu o livro notou). Apesar de ter sido dirigida pelo filho dela, Jayme Monjardim, o que poderia dar ares de parcialidade, a minissérie foi feliz. A meu ver, o diretor afastou-se (sofrivelmente, óbvio) o quando pode da mãe e encontrou-se com a grande artista que foi Mysa.

Tive a grata satisfação de dizer a Lira Neto, jornalista e autor de "Maysa - Só numa multidão de amores" (Edit. Globo) que seu livro é excelente. A obra não traz a história de uma personagem apenas, mas é um passeio pelo universo da melhor música já feita no Brasil. Ninguém ficou de fora. Ainda que não fosse uma grande cantora, Maysa já merecia uma biografia, porque se trata de uma mulher íntegra, mas ao mesmo tempo transgressora, uma odiada, uma agredida, uma Janis Joplin, alguém que fez da vida o que bem quis -- o que talvez explique suas fossas e sua irremediável solidão.

A cantora, em início dos 60, por exemplo, já famosa, flertou com a recém-nascida Bossa Nova, que ganharia, pouco tempo depois, adeptos como Nara Leão, por exemplo. Algumas das interpretações de Maysa , sereníssimas, do tipo "pois há menos peixinhos a nadar no mar / do que os beijinhos que darei na sua boca (...) dentro dos meus braços / os abraços" (Chega de Saudade) ou então "o barquinho a deslizar, no macio azul do mar / céu tão azul, tudo isso é paz / tudo isso traz / uma calma de verão (...) a tardinha cai" (O Barquinho), contrastam -- e muito -- com o seu temperamento explosivo e amargo, de mundo caindo e garrafa voando.

Maysa Figueira Monjardim Matarazzo (principalmente Matarazzo) foi cantora de sucesso, como já vimos, embora seja pouco lembrada como compositora. Revelou-se com o samba canção "Ouça", dela, em fins da década de 50. Suas letras -- analisadas com toda seriedade -- não são extraordinárias como, por exemplo, as de sua amiga Dolores Duran, a autora da maravilhosa "A Noite do Meu Bem", canção que, inclusive, fora gravada por Maysa. As letras dela não são geniais, mas também não são supérfluas. Trazem a sua angústia, sua tristeza, sua inquietação interior. Ela jogou em seus inúmeros diários a mesma substância que sua contemporânea Clarice Lispector lançou em seus livros. Trata-se de um universo particular -- porém admirável.

Maysa fora vítima de seus próprios excessos. Viveu quarenta anos. Sua coleguinha (e arquiinimiga) Elis Regina, outra que se foi tragicamente, viveu trinta e seis.Esse pessoal não dura muito. Maysa fora infinita enquando viveu. A melhor interpretação para o clássico "Ne me quitte pas" (Jacques Brell), um mundo dentro de uma pessoa que ousa cantá-la, ainda é o da brasileira Maysa. Ela foi parar, inclusive, no filme "A lei do desejo" (1987), de Pedro Almodóvar, com Antonio Banderas. (Alguém aí viu?). A mulher que cantava "só digo o que penso / só faço o que gosto" era alcóolatra, e faleceu em janeiro de 1977, num acidente estúpido, que deixou sua brasília azul em petição de miséria. A perícia analisando o cadáver, constatou que ela morrera sem uma gota de álcool no sangue. Para tapar a boca daqueles que um dia a difamaram, dos que queriam vê-la pelas costas, daqueles que invejaram sua mansão e seu prestígio, dos que a sepultaram em vida. Até na hora da morte Maysa se manteve digna.

Por essas e outras é que Maysa não fora qualquer uma.

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