Sei ser possível tirar proveito das
frugalidades do cotidiano. Como o resto dos mortais eu também aprecio a boa
mesa com os amigos, os descontraídos passeios públicos, os encontros
familiares, as festas e as outras formas de divertimento coletivo. Mais entre
os encontros sociais e o sossego do lar estarei sempre mais disposto ao
encontro da quietude do lar. Os burburinhos públicos dão-me cada vez mais nos
nervos. Não se estar mais na rua sem parecer estar num palco encenando mil
gestos pra plateia. É tudo burla, falsidade. Deles não se tira nenhum proveito.
Já no lar são incontáveis as alegrias contidas nele. Isso é especialmente fácil
de constatar quando se tem uma estante pejada de livros e nenhum encontro
marcado.
25
de
fevereiro
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud!
Os teus dezoito anos rebeldes à amizade,
à malevolência, à estupidez dos poetas
de Paris,
tal como ao zumbir de abelha estéril da
tua família meio louca das Ardenas; fizeste bem em lançá-los todos aos
quatro-ventos,
em submetê-los à lâmina da sua precoce
guilhotina.
Tiveste razão em trocar os bulevares dos
ociosos,
os bares dos mija-rimas pelo inferno das
bestas,
pelo comércio dos manhosos e os bons
dias dos simples.
Este impulso absurdo do corpo e da alma,
esta bala de canhão que atinge o alvo,
fazendo-o explodir, isso sim, é a vida
de um homem!
Não se pode, saído da infância,
estrangular indefinidamente o próximo.
Se os vulcões pouco mudam de lugar,
a lava percorre o grande vazio do mundo
e concede-lhe virtudes que cantam nas
suas chagas abertas.
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud!
Alguns de nós acreditam sem provas na felicidade possível contigo.
René Char (1907-1988), França.
24
de
fevereiro
Oração por Marilyn Monroe
Senhor
recebe a esta moça conhecida em toda
parte pelo nome de Marilyn Monroe
mesmo que esse não fosse seu verdadeiro
nome
(mas Tu conheces seu verdadeiro nome, o
da pequena órfã violada aos 9 anos
e da empregadinha de loja que aos 16
anos já queria se matar)
e que agora se apresenta diante de Ti
sem maquiagem
sem um Agente de Imprensa
sem fotógrafos e sem dar autógrafos
solitária como um astronauta diante da
noite espacial.
Ela sonhou quando menina que estava nua
numa Igreja (pela versão do Time )
ante uma multidão prostrada, com as
cabeças no chão
e tinha de caminhar pé ante pé para não
pisar nas cabeças.
Tu conheces nossos sonhos melhor que os
psiquiatras –Igreja, casa, cova são a segurança do seio materno
mas também algo mais que isso...
As cabeças são os admiradores, é claro
(a massa de cabeças na escuridão debaixo
do facho de luz).
Mas o templo não são os estúdios da 20th
Century Fox.
O templo – de mármore e ouro – é o
templo de seu corpoem que está o Filho do Homem com látego na mão
expulsando os mercadores da 20th Century
Fox
que fizeram de Tua casa de oração um
covil de ladrões.
Senhor
neste mundo contaminado de pecados e
radioatividade
Tu não culparás tão-somente a
empregadinha da loja.
Que como toda empregada de loja sonhou
ser estrela de cinema.
E seu sonho tornou-se realidade (mas com
a realidade do technicolor).
Ela não fez senão atuar conforme o
script que lhe demos
- O de nossas próprias vidas – E era um
script absurdo.
Perdoa Senhor e perdoa-nos a todos pela
nossa 20th Century Fox
por esta Colossal Superprodução em que
todos nós trabalhamos.
Ela tinha fome de amor e lhe demos
tranqüilizantes,
para a tristeza de não ser santos,
recomendamos-lhe a Psicanálise.
Lembra-te Senhor de seu crescente pavor
à câmera
e o ódio à maquiagem – insistindo em
maquiar-se em cada cena –e como foi se tornando maior o horror
e maior a impontualidade nos estúdios.
Como toda empregada de loja
sonhou tornar-se estrela de cinema.
E sua vida foi irreal como um sonho que
um psiquiatra interpreta e arquiva.
Seus romances foram um beijo com os
olhos fechados
que quando se abrem
descobre-se que foi sob os refletores
e apagam os refletores!
e desmontam as paredes do aposento (era
um set cinematográfico)
enquanto o Diretor se afasta com sua
caderneta porque a cena já foi filmada.
Ou uma viagem de iate, um beijo em
Cingapura, um baile e no Rio
uma recepção na mansão do Duque e da
Duquesa de Windsor
vistos na TV de um apartamento
miserável.
O filme terminou sem o beijo final.
Foi achada morta em sua cama com a mão
no telefone.
E os detetives não souberam a quem ela
ia chamar.
Foi como alguém que discou o número da
única voz amiga
e ouviu apenas a voz de uma gravação que
diz: WRONG NUMBER.
Ou como alguém que ferido pelos
gangsters
estende a mão a um telefone desligado.
Senhor
quem quer que tenha sido quem ela queria
chamar
e não chamou (e talvez fosse ninguém
ou era Alguém cujo número não está na
Lista de Los Angeles)
atende Tu ao telefone!
________________________
Poema de Ernesto Cardenal. Trad. de Antonio Miranda
Validação
Vivemos numa sociedade em que a todo instante as pessoas
querem tranquilizar-se acerca de seu valor. Não lhes bastam a certeza
individual de que elas são especiais. É preciso o julgamento favorável dos
outros para serenar as dúvidas quanto as suas qualidades.
Já velho em nossa sociedade industrial, esse fenômeno de
estrelismo explícito, tornou-se ainda mais evidente depois do advento das redes
sociais. A exposição fácil potencializou o fetichismo dos narcisistas por
audiência às suas pretensas qualidades de sobredotados.
Vemos assim surgir a cada instante, nesses sítios de
adoração pessoal, tentativas forçadas de extrair dos amigos uma palavra de
conforto que pacifique as ilusões mais delirantes, daqueles que se imaginam
injustiçados pelo mundo, porque não são reverenciados com a devida atenção que
julgam merecer.
Vale de tudo para estar em evidência e tranquilizar assim a
consciência da certeza de que se tem algo a mais do que os outros. Os
desesperados recursos postos em marcha, para validar a satisfação pessoal por
reconhecimento, são infindáveis. Uns se cobrem de marcas caras e pousam ao lado
de carros na esperança de verem o desejo, que esses objetos provocam nos
incautos, migrar para si. Outros postam fotos de pernas pro ar, brindando
solitários com o vento à beira da piscina, à espera de mesuras às suas
invejáveis conquistas materiais. Há ainda aqueles que lhes enviam textos cujo o
único propósito é saber se você estar mesmo lendo e acompanhando tudo o que
eles escrevem. Os mais suspeitos, de que não passam mesmo de coadjuvante no
grande palco do mundo, entulham as suas timeline com autorretratos elogiando a si mesmo
e curtindo todas as suas fotos. Ao invés de se evidenciarem, todos esses atos
denunciam apenas a completa invisibilidade dessas pessoas.
Desconfortáveis consigo, elas, pagariam qualquer coisa para
serem iguaizinhas as mais bem sucedidas estrelas da música, do cinema, da tevê.
Mal sabem, porém, que as invejáveis divas estão tão insatisfeitas e
fragilizadas a respeito de seus valores quantos os invejosos do “sucesso”
alheio nas redes sociais. O problema não são as pessoas, mas o modo de vida que
exalta um ideário falacioso de felicidade que não se conforta consigo mesmo,
mas atribui a outro toda motivação para continuar seguindo a jornada da vida.
Num mundo onde impera a culpa pelo fracasso de não se ter
elevado a nenhum posto de destaque na sociedade, as pessoas dão-se em
espetáculos bisonhos na tentativa de se redimirem por não terem alcançado o
esperado sucesso determinado pela sociedade. O fracasso, em nosso mundo, é
inadmissível e ele está intimamente ligado ao não cumprimento de determinações
externas à nossa vontade. Escravizados por forças contrárias a vida
simples, entregamo-nos a toda sorte de alucinações, só para cumprir o
papel social que os outros nos impuseram.
21
de
fevereiro
O triunfo da maldade
Foto: Boris Ignatovich: Praça Vermelha, 1930
.
Leio muita gente pregando, pelas redes
sociais, contra o preconceito. Salto de alegria e exulto que assim seja. Um
mundo de preconceitos é intolerável. Mas basta seguir lendo os comentários, que
geralmente são longos, para se dar conta de que, as pessoas não estão realmente
rechaçando as atitudes de ódio, mas antes, alimentando o ódio. Custa-me
acreditar que se estar combatendo o preconceito, quando se defende nordestinos,
dizendo que sulistas são: “porcos”. Há nalgumas pessoas uma certa dificuldade
em entender que o objetivo da busca da igualdade não é o de poderem fazer o mal
que os outros fazem. Quando ninguém é mais capaz de enxergar em si mesmo o
mostro que combate é porque a estupidez triunfou de vez.
18
de
fevereiro
Da dessemelhança
.
As poucas décadas de nossa débil
democracia evidenciam-nos um fato. Os nossos homens públicos se apequenam com o
trato da coisa pública. Muitos começam grandes e vão se rebaixando a tal ponto
deles não se ter mais notícia. Entre nós, hoje em dia, é incomum encontrar um
político que se obstine de uma ideia louvável no princípio de sua carreira e dê
cabo dela sem tropeçar nas mesmas vilanias que seus pares viciados. Nada nos
nossos políticos parece estável. Não se pode confiar em suas crenças e nenhuma
de suas convicções, estão tão bem assentadas num rumo que não possam alterar
bruscamente o seu destino de acordo com novas conveniências que, vão interpondo-se
pelo caminho. Raros são os que preservam o mesmo vigor reformista e transformador
que, segundo muitos, os trouxeram aos palanques. Dir-se-á quem os
observa que, não há um único sentimento de virtude neles que não seja
prontamente seguido por um dilúvio de males. Na trajetória de suas vidas muitos
faroleiros da moralidade deixaram à deriva ou levaram à pique embarcações que
contavam com esse guia para atingir porto seguro. Uma vez enfeitados com os
favores do mundo, julgamos que nossos administradores não são mais os mesmos
homens. Já não conservam mais inteiros e vivos os entusiasmos de antes. Embaraços,
infâmias, crimes e delinquências de toda ordem, contradizem as suas origens. Suas
ações parecem não mais provir daquele mesmo indivíduo que se negava em conduzir
a sua política percorrendo o caminho geral. Uma vez eleitos eles assumem os
postos como feras, os conduzem como raposas, e por fim os entregam, ou lhes são
tomadas as ocupações, como cães vadios. Há tantos exemplos semelhantes a estes
e tão facilmente encontramos esses casos que, estranho mesmo seria imaginar os
nossos políticos de outro modo. É um
vício que há muito censuramos nos nossos mandatários, este de serem após a investidura
dos cargos públicos tão dessemelhantes daqueles indivíduos de antes. A
experiência nos mostra todos os dias que existe grande diferença entre as
súbitas determinações da alma e a sua conduta habitual.
16
de
fevereiro
O que esconde o cinema de entretenimento?
Cena do filme: A lenda do tesouro perdido.
Vi ontem, um daqueles blackbuster
americano feito na medida para atrair o público às salas de cinema. Como todos
sabem esses filmes seguem um receituário estrito de ingredientes. Os elementos desse
angu se restringem basicamente a: astros consagrados como protagonistas;
mocinhas com potencial para capas de revista teen; ajudantes bobalhões em meio a uma enrascada que envolva o
maior número possível de encrenca cujo final é tão previsível quanto saber de que
lado está o PMDB na política nacional.
De tão ingênuos muitos dirão que eles
são inofensivos e incapazes de causar danos. Uma diversão despretensiosa jamais
será capaz de provocar qualquer lesão contra à inteligência daqueles que vão assistir
a estes filmes. É o que ouvimos. Afinal quem assiste a estes filmes sabem - ou
imaginamos que eles saibam - de véspera, o que os aguardam. São como as novelas
da Globo que há quarenta anos contam a mesma história. O que muda são apenas os
ambientes, as épocas e, eventualmente, os efeitos. O que pode a repetição de
padrões tão insistentes?
Porém, de bobinhos estes filmes não têm
nada. Não são apenas máquinas de fazer dinheiro que alimentam uma indústria
bilionária. São porta-vozes de um modo de vida e de uma cultura que, desde o
último século, vêm moldando as outras culturas, com a força de narrativas que,
tentam legitimar as suas ações perante o mundo através de um discurso obstinado,
pela crença de que estão fadados a um certo destino. Feitos com o argumento de
que estarão entretendo estes filmes transmitem muito mais do que diversão.
O Lenda do Tesouro Perdido, filme que vi
nesse feriado de carnaval, tem Nicolas Cage vivendo um caçador de tesouros.
Cage pertence a 3ª geração de uma família que busca desvendar os mistérios
envolvendo um obscuro tesouro, que poucos acreditam existir. Acumulado durante vários
séculos e transportado por muitos continentes para evitar que fosse roubado, ou
que caísse em mãos espúrias, esse tesouro está provavelmente agora guardado em
solo Americano. A trama é tecida
sugerindo a ideia de que esse tesouro que ajudou antigas civilizações no
processo de consolidação de suas nações e expansão de seus domínios caiu como
um fadário ao povo americano.
Disfarçados sob o manto do
entretenimento esse e outros tantos filmes de aventura incutem a velha
ideologia americana do “Destino Manifesto”. Esse pensamento que surgiu nos
primeiros anos após a independência propugna a crença de que o povo dos Estados
Unidos são o mais novo povo eleito por Deus para civilizar o mundo. O tesouro
buscado por Gates no filme que pertenceu a antigas civilizações, hoje está em
posse dos Americanos. Os saberes do mundo, as riquezas das nações, os antigos
caminhos, tudo pertence agora aos americanos.
Pintura de John
Gast. Representação pictórica do Destino Manifesto. Na cena, uma mulher angelical, algumas vezes identificada como
Colúmbia, (uma personificação dos Estados Unidos do século XIX), segurando um
livro escolar, leva a civilização para o oeste, com colonos americanos,
prendendo cabos telegráficos, por outro lado, povos nativos e animais selvagens
são afugentados.(fonte Wikipedia)
Algumas cenas do filme reforçam de forma
implícita o destino manifesto do povo americano. Quando Gates tem que roubar a
declaração de independência do arquivo nacional para evitar que bandidos o
façam ele evoca o discurso dos patriarcas que diziam:
...sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.
Através desse discurso os americanos
evocam para si a responsabilidade de supostamente defender os povos do mundo
contra os governos “destrutivos”. Agindo assim eles se sentem justificados para
atacarem todos os que se voltem contra os princípios da liberdade. Mas fazem
isso na verdade para manutenção de sua influência.
Os filmes americanos induzem a crença
nos milhares de espectadores que os prestigiam pelo mundo, de que suas ações no
mundo são movidas - assim como Gates que tem de infringir a ordem das coisas
para restaurar um bem maior - pelas mais
genuínas e nobres intenções. Por essa crença eles legitimam as invasões de
países. Atentam contra a soberania dos povos. Desrespeitam culturas e mesmo
assim acreditam na sua pureza pois se veem movidos pela vontade não dos homens,
mas de Deus. Esse nada inofensivo discurso inocula nas mentalidades neófitas dos
milhões de entusiastas desse gênero de cinema a crença de estarem apenas se
divertindo quando estão na verdade sendo doutrinados para reações mais acomodatícias.
13
de
fevereiro
Carnaval o sonho de um mundo porvir
.
Todos os anos é a mesma coisa. As ruas
se enchem de alegria. O silêncio é quebrado por inumeráveis gritos de festas
que se espalham por todos os cantos. As cores vibram no ar, na terra, no mar e
misturam-se aos corpos que se contorcem, questionando a lógico do que pode um
corpo. Multidões invadem todos os sítios. Velhos reumáticos, apoiados em seus
mais novos membros, derivam às ruas, acompanhando a corrente que se infiltra como
sangue renovado nas artérias das cidades, imprimindo-lhes novos ânimos por
todos os cantos. Homens e mulheres andam por todas as partes desejando praticar
livremente todos os prazeres. Estão todos mascarados, desmazeladas ou cheios de
opulência e anunciam aos berros que é Carnaval, aqui e alhures.
As festas do Carnaval fazem parte de um
tempo extraordinário. Muitos povos tiveram o hábito de observar um período do
ano em que as normas sociais eram temporariamente suspensas para o gozo das
liberdades de costumes, onde as paixões mais inflamadas não encontravam nenhuma
oposição ou constrangimento. Durante esse período, os homens punham as leis e a
moral, habitualmente rígidas e intransponíveis, sob suspensão. A palavra de
ordem era: transgressão.
De todos esses períodos de ruptura das
proibições o mais conhecido e que deu origem – provavelmente - ao nosso
Carnaval, foi aquele que se relacionava com os festejos romanos das Saturnais,
ou Saturnálias, que comemoravam o reinado do antigo deus romano da agricultura,
Saturno. Um dos aspectos mais interessante dessa festa, que reconstituía o
governo de Saturno, estava na concessão aos escravos, de liberdades para agirem
com vitupérios e escarnio contra os seus próprios patrões durante um curto
período do mês de dezembro, época dos festejos da colheita e da celebração da
divindade.
Segundo a mitologia grega, Saturno era
uma divindade romana identificada com o deus grego Cronos. No tempo em que esse
deus reinava sobre a Itália os homens, nos fala o mito, viviam libertos dos
enfados. Ninguém conhecia a injustiça porque não havia necessidade de bens. A distinção
de classes não era conhecida. Todos gozavam de igual liberdade e não tinham
sido inventadas ainda as portas, porque o roubo não existia e os homens nada
tinham a esconder. O reino de Saturno foi um reino extraordinariamente próspero,
por isso essa época ficou conhecida como a Idade de Ouro.
Inspirados nesse mito os romanos
realizavam todos os anos uma celebração à memória do deus e reviviam provisoriamente
a época do reino de Saturno. Comer e beber lautamente, participar de alegres
celebrações e buscar imoderadamente os prazeres eram, segundo James Frazer, as características
que parecem ter marcado particularmente aqueles carnavais da antiguidade, que
se prolongaram ao nosso tempo através da diluição dos velhos ritos romanos nos
festejos do calendário Cristão, associados a entrada da Quaresma, quando nos
despedimos dos excessos da carne (de onde veio a moderna designação de
“Carnaval”), para ingressar no período de privações. Ainda que sejam associadas
inteiramente aos ritos pagãos o mito não deixa de possuir um sentido cristão
que está diretamente ligado à sua gênese, como pode ser apurado por sua relação
como o período do ano litúrgico que antecede a Páscoa.
As semelhanças entre as Saturnais
romanas e o Carnaval já foram observadas várias vezes. Herdeiros que somos de
muitas das tradições latinas, esses festejos antigos encontraram morada segura
entre a nossa gente, que alegremente celebram o rito que permite uma
restauração do reinado daquele alegre monarca que presidia às orgias numa terra
de abundância, que não conhecia nenhum rumor de guerra ou de discórdia entre os
homens.
Para alguns esta é a data do ano mais
esperada. As pessoas planejam com muita antecedência esse momento. Os pobres gastam
o que não têm em luxuriantes adornos, cheios de brilho e plumas só para
satisfazerem, por um breve instante de suas vidas, o desejo de serem o que a
realidade e outras farsas, interditaram. Nesses dias os sonhos ganham todas as
formas e o ordinário da vida passa a ser a exceção.
O povo não apenas se permite sonhar com
um tempo de fartura, mas ousa concretizar esse sonho imprimindo tudo de si. Alguns
veem nessa ação uma irresponsabilidade dos que já têm tão pouco. Gastar os
últimos recursos, numa fantasia, enquanto o barraco ameaça mais uma vez
despencar morro a baixo? Inquietam-se os conservadores. Mas por trás dessa
sublevação existe uma reivindicação inconsciente das camadas populares, que
ousam afrontar os estratos sociais e bradam contra as imposturas dos mandatário,
que impõe ao povo, inacreditáveis limitações. “Isso é um protesto do sonho
contra a injustiça” disse Ariano Suassuna em uma de suas aulas
espetáculo, falando a propósito das espetaculares fantasias criadas pelo povo
durante o Carnaval.
Nesses dias licenciosos o povo tem a
chance de sonhar com uma realidade menos dura. Mas até mesmo esse dia, de libertação das
privações, encontra-se hoje inteiramente ameaçado pela intromissão dos
aparelhos da Indústria Cultural nas manifestações genuínas do povo. Este aparelhamento
retira o protagonismo das gentes simples das festas e tenta substituí-lo por
organizações mafiosas que represam com cinismo as espontâneas manifestações de
rebeldia popular com potencial poder de amotinação.
O Carnaval guarda em germe a esperança
humana de um mundo porvir onde a vida será uma festa.
12
de
fevereiro
Os rapazes e as maçãs
Os rapazes e as maçãs
Um dia, um lavrador ia montado no seu
burro, com uma cesta de maçãs à sua frente, e ao ver um grupo de rapazes de
várias idades a brincar num terreiro, resolveu meter-se com eles e lançar-lhes
um desafio:
– Ó rapazes, vou pôr esta cesta de
maçãs lá mais para diante. Por isso depois, toca a correr! O primeiro que lá
chegar fica com elas.
Eles então deram as mãos uns aos
outros, de maneira que os mais fortes ajudaram os mais fracos a correr também,
chegando todos ao mesmo tempo até à cesta das maçãs. E no final, sentaram-se
todos a comê-las. O lavrador, muito admirado com a atitude dos rapazes,
perguntou-lhes:
– Por que razão fizestes isso,
quando um de vós podia ter ganho as maçãs todas?
E eles responderam:
– Se o não fizéssemos, um de nós
ficava contente e os outros tristes. Assim, ficámos todos bem. Nenhum ficou
triste.
__________
Conto popular
11
de
fevereiro
Duplipensar
Duplipensar é um conceito formulado por
George Orwell no livro “1984” que expressa a estratégia mental usada pelo
partido no poder para aniquilar a lógica e a racionalidade enquanto
instrumentos de análise da realidade e assim consentir pela manipulação das
opiniões públicas a manutenção do seu poder.
10
de
fevereiro
À volta da fogueira
.
Muito antes da
luz elétrica, do livro, das escolas, da escrita, era no escuro da noite, entre
o clarão miúdo da lamparina, em consórcio com a lua, que mal tangia as sombras,
que pais reuniam os seus filhos e amigos da comunidade para contar histórias.
Na comunhão do círculo brotavam histórias que descreviam e exemplificavam
conceitos morais.
Entre as
ocupações domésticas e o fiar de tecidos, as mães também empregavam as histórias
nas funções de entreter e instruir os filhos. Fazendo isso, elas talvez não
imaginassem, mas também estavam transmitindo valores, induzindo comportamento,
alimentando a fantasia das crianças na superação de seus limites.
São através das
histórias que os homens organizam as suas sociedades. São as narrativas que
orientam a compreensão do homem sobre si mesmo e sobre os mistérios do mundo.
Diferentes experiências, que contrastavam com as suas próprias, ajudaram o
homem na construção do mundo. Através de diferentes papeis, vive-se o outro, e
testemunhamos as alegrias e os dessabores do mundo.
Usando uma
linguagem simbólica os contos, lendas, mitos, que pais e mães nos contaram, promovem
uma descoberta com o essencial das coisas. A realidade, pelo contrário, é o
encontro com a aparência. “Por trás de todas as histórias de casas assombradas”
escreve Marina Colasanti em seu fabuloso livro Fragatas para Terras Distantes:
“há uma única e grande história, a do pequeno ser humano enfrentando corajosamente sua finitude.... onde as palavras nos contam que a casa está vazia porque ninguém se atreve a enfrentar o fantasma, o reverso das palavras nos diz que quem não enfrenta seus medos não é dono de si, não se habita. E quando as palavras nos relatam como a personagem decide assumir a casa, enfrentar o fantasma e derrota-lo ao fim da história, lemos por trás delas que a coragem é possível, que nossa vida nos pertence na medida em que enfrentamos a morte, até o fim daquela breve história que é a nossa”. (COLASANTI, 2004, p. 20).
A arte de saber
ouvir, já nos ensinavam os antigos, é a antecâmara do conhecimento.
No entanto,
mesmo tendo tantos valores, as histórias hoje são, ou totalmente negligenciadas
como fontes de instrução, ou são mutiladas para atenderem a um determinado e
preguiçoso modo de interpretação do mundo onde as rugosidades da vida não
cabem.
Num tempo de
desintegração das identidades, a cultura de resistência da memória, assume,
cada vez mais, um papel importante na construção e afirmação das identidades coletivas, que sofrem, como consequências das ações da suinocultura televisiva,
do entretenimento da indústria cultura e das políticas que se identificam com
uma certa esquerda culpada, um desbotamento de suas inequívocas potencialidade
de ancoragem das estruturas de identidade, que se recusam o processo de homogeneização
e pasteurização impostas pela cultura de massa.
9
de
fevereiro
Elucidário
.
No último capítulo do
clássico livro CANTADORES o folclorista cearense Leonardo Mota nos apresenta os
modos de pronunciar próprios dos cantadores de sua época.
Sem lhes adulterar o
registro, reproduzindo-o tal qual o encontrou, o trabalho de Leonardo sugere
com uma recolha dessas expressões, a rica prosódia dos menestréis que corriam
mundo cantando aventuras de heróis e feitos maravilhosos.
Com o iluminado título
de ELUCIDÁRIO o folclorista elenca uma série de expressões usadas pelos
cantadores que se constitui um verdadeiro dicionário "cacoépico".
Alguém aí é capaz de me
dizer o que significa:
"Aguentar tempo
sem se amoitar".
6
de
fevereiro
O enfado de pensar em demasia
Pensar em demasia é muito fatigante.
Quando? Questiono-me ao ler um post no facebook de alguém que se diz cansado de
pensar. Na busca de alento a sua consciência pesada, a tal pessoa, socorreu-se
no que acreditava ser o último recurso disponível a um cérebro exaurido por mil
inquietações: um livro cheio de sacanagem canhestra em linguagem rasteira,
que vem fazendo as cabeças daqueles que desejam sossegar as suas cansadas
mentes, com algo menos comprometedor aos seus doridos neurônios. Poucas vezes
vi com tanta candura a utilização dessa literatura barata. É para isso mesmo
que elas servem, asseguram-me seus leitores, para não ter que pensar. Deixar
escapar o cérebro para rotas desconhecidas e percorrer caminhos ainda não
desbravados é demais fatigante, ainda mais para quem estar tão desacostumado a
essas rotinas de aventureiros. Esvaziar as suas consciências de qualquer tarefa
mais pesada do que mergulhar num vazio de sentidos e nulidades, que não terão
reverberações após o dobrar da última página, deve ter lá a sua eficiência,
porque não canso de ver gente se socorrendo nesse refúgio. O enfado de uma
existência vazia, só pode mesmo ser recompensado com uma alegoria de histórias
vazias, onde a vida só tem sentido quando apanhada de quatro na cama tomando
mil chibatadas antes de voltar ao vazio que a levou às peias. Amortizar assim a tarefa de pensar, com ações
de não ter que pensar, tem sido o exasperado recurso dos que imaginam pensar
demais. As pessoas não sabem o que é pensar, porque nunca viveram a consciência
de pensar. Estando apenas atulhadas de insignificâncias, imaginam com isso estar
a pensar em demasia. Cercados por entulhos de informações inúteis que as impedem de avaliar o pensamento com critérios de qualidade que se distingue da
quantidade. Iludem-se com a ideia de que andam pensando além do suportável.
Estar com a cabeça cheia não é estar cansado de pensar é estar cansado de não
pensar. Pensar para percebermos que não
devemos pensar tanto. Pensar para refrear o pensamento. É não pensar. O verdadeiro
pensamento não se cansa. A cada passo dado, a cada nova descoberta ele se
constitui num renovado interesse sobre si mesmo e sobre o seu alcance.
5
de
fevereiro
A pedagogia do reducionismo
.
Deformam o texto, mutilam a literatura,
impor versões esdruxula, e dizem com isso que estão ensinando as pessoas a
pensar, só pode ser piada. Dessas ações só podem surgir as piores aberrações.
Versões anacrônicas com viés moralista desqualificam as potencialidades do
conto e de qualquer outra narrativa (vide o estado islâmico que ler o corão com
um olho escrutinador).
Hoje os contos, que os professores não
leem, só aparecem às crianças em versões amesquinhadas. Simplificadas de seus
significados mais profundos. Dão-se muito mais para especulações moralistas do
que para encorajamentos e enfrentamentos dos dilemas que as ameaçará no
percurso da vida. Servem antes ao panfletismo, do que auxiliam
a criança a desenvolver sua imaginação e estímulo à criatividade. Para encontrar um significado mais profundo, nos contos,
assegurou Bruno Bettelheim, devemos ser capazes de transcender os limites
estreitos. A simplificação rasteira serve a outros propósitos.
Além de desconhecerem os contos, que
muitas vezes só viram nas versões da Disney, desconhecem ainda os estudiosos do
tema. Mais isso não os demove de suas nobres tarefas de erradicar os supostos
preconceitos que esses contos disseminam. Em suas cabeças reinam apenas a
militância dos bons hábitos. Em que pese os danos dessas leituras, sem anteparo
de alguma memória histórica, essa pedagogia canhestra, ganha mais e mais adeptos.
No livro de Bruno Bettelheim que avalia as contribuições dos contos para a
psicologia das crianças ele afirma que:
“As
escolhas das crianças são baseadas não tanto sobre o certo versus o errado, mas sobre quem desperta sua simpatia e quem
desperta sua antipatia. O conto de fadas oferece soluções sob formas que a
criança pode apreender no seu nível de compreensão".
Portanto os contos falam da eterna
batalha do bem contra o mal. De forças destrutivas que ameaçam a vida. Os
contos ajudam as crianças a entenderem os difíceis dilemas da existência e as
ajudam a entender que nessa batalha haverá sempre a possibilidade de
enfrentamento das dificuldades. São tão pródigos em auxílio às consciências que
eram, segundo Bettelheim prescritos pelos velhos hindus como exercícios de
meditação:
“Num
conto de fadas, os processos internos são externalizados e tornam-se
compreensíveis enquanto representados pelas figuras da estória e seus
incidentes. Por esta razão, na medicina tradicional hindu um conto de fadas
personificando seu problema particular era oferecido para meditação a uma
pessoa desorientada psiquicamente. Esperava-se que meditando sobre a estória a
pessoa perturbada fosse levada a visualizar tanto a natureza do impasse
existencial que sofria, como a possibilidade de sua resolução. A partir do que
um conto específico implicava acerca de desesperos, esperanças e métodos do
homem para vencer tribulações, o paciente poderia descobrir não só um caminho
para fora de sua desgraça mas também um caminho para se encontrar, como fazia o
herói da estória”.
A tarefa do conto é ajudar a criança a
conseguir uma consciência mais madura para civilizar as pressões caóticas de
seu inconsciente. Retalhá-lo, ao mero discurso panfletário, é o mesmo que inutilizar a sua força.
“O
conto de fadas é terapêutico porque o paciente encontra sua própria solução
através da contemplação do que a estória parece implicar acerca de seus
conflitos internos neste momento da vida”.
Sobre a forma simbólica, que melhor fala
às crianças, os contos, sugerem que o mau não compensa, que as ações perversas não valem a pena. E que diante de uma grande dificuldade, de um obstáculo aparentemente intransponível, como
a luta contra um dragão, um lobo, um ogro ou um outro ser superior as suas
forças, ainda assim é possível vencer os seus problemas.
“O
conto de fadas é apresentado de um modo simples, caseiro; não fazem
solicitações ao leitor. Isto evita que até a menor das crianças se sinta
compelida a atuar de modo específico, e nunca a leva a se sentir inferior.
Longe de fazer solicitações, o conto de fadas reassegura, dá esperança para o
futuro, e oferece a promessa de um final feliz. Por esta razão, Lewis Carrol
chamou-o um ´presente de amor´".
Impor uma leitura miúda da história para
atender uma pauta moralista é o mesmo que esvaziar o conto de seu sentido profundo
que reside na busca de uma verdadeira consciência de nossa existência. "Hoje, como no passado, a tarefa mais
importante e também mais difícil na criação de uma criança é ajudá-la a
encontrar significado na vida. "
...
No momento em que seus lábios a tocaram, a princesa abriu os olhos e,
despertando, contemplou-o com TERNURA.
No trecho acima temos o momento em que o príncipe acorda a princesa.
No trecho acima temos o momento em que o príncipe acorda a princesa.
Uma visão desinformada dos contos vê
neste tipo de cena uma realização de desejos irrealistas, esquecendo completamente
a mensagem importante que transmitem os contos às criança.
A julgar pelas lições dadas nas escolas
as obras literárias torna-se dia a dia um mero instrumento utilitário e
informativo de programas panfletários; não se distinguiria hoje um romance de
uma lista telefônica; um poema, de uma caixa de medicamentos. A obra literária
serve a tudo, menos a arte.
Leituras pedestres, criam leitores
pedestres.
As leituras esquizofrênicas propugnam uma
leitura voltada aos temas políticos, uma espécie de literatura engajada. Nessa
nova versão de leitura tudo o que não está voltado aos temas em pauta é
simplesmente ignorado. A literatura perde sua completa autonomia e sujeita-se a
uma pauta alheia onde o autor da obra e leitor devem ser ambos tutelados.
Cria-se com isso uma literatura mostruário, bem aos moldes daquela ação papal
que mandou encobrir todas as vergonhas das estátuas do Vaticano porque eram
"imorais", ignorando simplesmente que elas estavam dentro de um
contexto que muito provavelmente não lhes cabiam na cabeça.
Os professores tirariam melhor proveito
da obra se a presumissem fora de seus programas reducionistas. Os contos têm
melhor eficiência quando não são vistos pela ótica de cenas isoladas,
capciosamente iluminadas para parecer sugerir o que definitivamente não sugerem.
Essas leituras amortecem os sentidos e roubam-lhes todos os significados mais
profundos, como os que:
“...sugerem
as experiências que são necessárias para desenvolver (na criança) ainda mais o
seu caráter. Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa está
ao alcance da pessoa apesar da adversidade - mas apenas se ela não se intimidar
com as lutas do destino, sem as quais nunca se adquire verdadeira identidade. Estas
estórias prometem à criança que, se ela ousar se engajar nesta busca
atemorizante, os poderes benevolentes virão em sua ajuda, e ela o conseguirá.
As estórias também advertem que os muito temerosos e de mente medíocre, que não
se arriscam a se encontrar, devem se estabelecer numa existência monótona - se
um destino ainda pior não recair sobre eles.”
A esquizofrenia das leituras políticas
chegou ao ponto de vivermos a obra para “catar” registros de condutas, desvios
de programas, metáforas insidiosas, esquecendo-se de todo o resto. Há um delírio
de listas, de prescrições que querem influir a toda gente um peso de culpa às
obras literárias.
A visão reducionista das histórias ao predomínio
dos temas de configurações morais e políticas, alijou os contos, no que eles
tem de mais proveitoso: “ajudar as
crianças na tarefa de conseguir uma
consciência mais madura para civilizar as pressões caóticas de seu inconsciente”.
O programa dos Estudos Culturais em sua
versão atual torna toda e qualquer obra, especialmente aquelas de origem
europeia em um panfleto dos discursos de dominação do imperialismo em sua forma
mais insidiosa. Sobre as pressões desses discursos estapafúrdios esvaziamos as potencialidades
dos melhores textos literários apenas para sujeitá-los aos modismos.
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