30
de
maio
Valhacouto de canalhas
"O patriotismo" escreveu
Samuel Johnson "é o último refúgio dos canalhas". A esse valhacouto junta-se
os bairristas, que são aqueles que pregam as supostas virtudes de sua terra,
esquecendo-se, por decoro ou mau-caratismo, as inconvenientes verdades, que por
ventura desminta as melhores qualidades dos sítios que se imaginava imaculados.
O menoscabo de si próprio é uma forma de
grandeza que os patriotas vez por outra deveriam experimentar. É um lembrete
que nos traz à terra e a todos nivela por igual. Todavia muitos ainda pensam
estar no melhor dos mundos possíveis, e não se permite a crítica de sua pátria
ou de sua cidade. Satisfaz-se assim com as ilusões que, convenientemente lhes
preenchem a algibeira, negando todas as evidências de vícios e malfeitos de
sua “terra amada”.
Mas a verdade das verdades é que: em
essência não há lugar no mundo, por mais belo e próspero que pareça, que não
pese vulgaridade, orgulho, falsidade e vergonha. Dotou-nos a todos o destino
dessa má sorte. Nisso estamos rendidos. Mesmo que os patriotas neguem cegamente
as evidências, e os bairristas finjam não ver as verdades, elas continuarão lá.
29
de
maio
Vida-circo
Foto: Justin Bartels
.
Deve ser bom poder ir à vontade para qualquer
lado. Estar sempre a guiar-se pela ponta do nariz e deixar-se ir, sem saber existir
alguém ou alguma coisa, que possa interferir em nosso caminho. Querer ir a
norte e ir a norte. Querer ir a sul e ir a sul. Percorrer assim caminhos, sem
dar noutro lugar a não ser aquele traçado de véspera. Deve ser bom poder ir estrada
afora, ter o pó, o sol, a chuva, o vento e um horizonte sem fim a acarinhar
nossa autodeterminação. Estar ali entre essas coisas miúdas deve nos dar a
certeza do nosso tamanho. Há de ser bom estar por lá onde temos a medida certa.
Melhor do que estar a escrevinhar ofícios à junta ou a apanhar migalha ao chão,
fingindo que os salamaleques são devidos a quem lhe paga o repasto.
27
de
maio
Prestar ouvidos
Andasse a tomar notas das falas de minha vó e por
essas horas já teria um livro de poesia.
23
de
maio
Mais-valia
Foto: Dani Shitagi
.
Uma lógica perversa vem
reduzindo todas as coisas ao sagrado critério da funcionalidade. Da arquitetura
moderna e seus discursos sobre a praticidade do meio, às escolhas paternas de
escolas de músicas para os filhos, porque estas desenvolvem o raciocínio lógico;
a arte de nosso tempo sucumbiu ao discurso do utilitarismo e só é consumida se
"servir para alguma coisa”. O que conta mesmo nas artes de hoje são apenas
os seus aspectos práticos, funcionais e utilitários.
E quem diz funcionalidade
na arquitetura e na música diz literatura, cinema. Basta ver nas escolas como o
cinema foi apequenado. Hoje assiste-se um filme apenas para que este aluda a um
assunto que se quer discutir. Nas universidades, a literatura deixou de ser o elã
despretensioso, para rebaixar-se aos discursos panfletários de moralistas.
A ninguém é suposto a
ideia de que a escolha de uma leitura ou de um filme se dê pelo mero prazer
subjetivo que este provoca. Aos discursos utilitaristas é preciso algum valor
aderente ao objeto artístico para que esse adquira legitimidade. Mais não é
isso que realmente torna a arte valioso. Todas as vezes que predominar o fim na
arte, escreveu Kant, teremos “beleza aderente” a obra. Entenda-se fim aqui como
aquilo que têm utilidade prática na vida. Quando não há predominância do fim,
temos “beleza livre”, desinteressada.
E é a esse último modo
de ver a arte, privada de interesse, que a torna indispensável. Sem estar sujeita
a priori a imposições de conteúdo,
forma e outros condicionantes, a arte se basta. Nessa concepção ela não serve para
nada, e quanto menos servir para alguma coisa mais valiosa será. Não se
reduzindo a uma realidade circunstancial a arte livre dos conceitos utilitaristas,
contribui para formar uma imagem do mundo, das pessoas e das relações, tão
complexas, em sentido universal.
16
de
maio
Muhammad Ali
Analisando sob o ângulo de um simulacro cênico, o pugilismo de Muhammad Ali, assumirá um daqueles aspectos de fatos reveladores que, nos esclarece imensas questões sobre a vida e a luta que devemos travar contra os maiores obstáculos, para permanecermos simplesmente em pé.
15
de
maio
A vida é caos
Nunca imaginei fazer um curso de
datilografia - os mais jovens não sabem o que é isso - até fazer um. Nunca
ocorreu-me, mesmo naqueles momentos de divagações a que todos nós estamos
sujeitos, a possibilidade de ir à Itália, até que esse dia improvável chegou.
Em tempo algum pensei em fazer um curso universitário, antes de fazer um curso
universitário. Jamais ocorreu-me ser professor universitário; abrir uma empresa
e acabar (ao menos momentaneamente, ou não) coordenador pedagógico de uma
escola rural de um distrito de minha cidade, que antes do trabalho, jamais havia
posto os pés, mesmo vivendo na mesma terra a mais de 12 anos.
Como as vidas são íntimas e nenhuma é
igual a outra, deduzo que a alguém sucede os caminhos não serem tão tortuosos,
nem assimétricos ou irregulares como os meus. Muitos já nascem fadados a uma
vida sem muitas surpresas. Do berço ao túmulo poucos percalços acidentam sua
rota. É o caso dos monarcas, cujas vidas já se sabe de véspera, mais ou menos,
o seu fim. Veja-se a propósito o burburinho real com o nascimento do príncipe
George, terceiro na linha de sucessão do trono Inglês. Ninguém ousa dizer que
sua vida é imprevisível. Mesmo que não venha a se tornar rei, como se supõe,
será improvável uma rota irregular em sua existência, que o desvie do fadário
real e de todas as suas obrigações encarrilhadas.
Já a nós, pobres mortais, a vida não é
regida por uma ordem prévia, mas se faz sentir pelas circunstâncias que vão ora
aqui, ora ali, descrevendo ao acaso, uma órbita improvável. Censuramos a vida
por essa volubilidade. Frequentemente nos queixamos por não a vê-la como
queríamos. Esbravejamos, berramos e maldizemos a sorte, por nos impor fardos
que sentimos, demasiadamente, injustos. Tudo isso, para descobrirmos depois de
muito tempo, que não adianta queixumes. Os lamentos não nos traz de volta a
fortuna, que imaginávamos estar destinados. Antes, revela-nos, que jamais
chegamos a possuir sorte maior do que a de estarmos vivos e que esta dádiva tem
um preço. Nec semper lilia florente é
a expressão cunhada por Ovídio na Arte de Amar para dizer que nem sempre as
coisas nos são favoráveis. Contentemo-nos com isso. Nem todos escapam a fortuna. Muitos estão ao sabor do acaso.
E agora o que a vida me reserva?
9
de
maio
Vincar a memória
Foto: Sally Mann, Deep South
Há mais de 20 anos deixei a Paraíba.
Nunca mais retornei às cidades que me viram miúdo aprendendo a falar e a andar.
Não foi por não querer, ou por falta de oportunidade, que não retornei à minha
terra natal. Foi por medo.
Há muito botei na cabeça que se um dia
eu retornar às cidades que foram a levedura de minha infância, estarei
ameaçando com isso a imagem afetiva que, desde o meu último dia naquelas terras,
eu trago na memória. E são ternas. Lindas e amáveis essas imagens.
Um sentimento estranho me faz crer que
posso ser traído por uma verdade incomoda e descobrir que as belezas que um dia
eu julguei ter vivido não passavam de alucinações de uma mente sequiosa de
ilusões capazes de tornar o presente suportável, por já ter vivido um passado
satisfatório. Seria duro demais perder a ilusão.
As emoções que produziram aqueles
momentos são irrepetíveis. Só por isso é sempre grande o impulso que nos surge
para cristalizá-los tornando perenes as emoções que produziram instantes
líricos. Voltar lá seria o mesmo que viver de outra maneira aquele ambiente
comprometendo assim a minha lembrança de momentos inesquecíveis.
Não sinto o mesmo temor a outros
lugares. Ao contrário sinto até vontade de rever lugares que há muito tempo
visitei. Goiás Velho, Veneza, Caldas Novas, Jundiaí... Meu medo é o de retornar
às paisagens da infância. Temo que elas se desmoronem sobre a novidade que se
me apresentará.
8
de
maio
Arte religiosa
Pintura: São Francisco em meditação. Francisco de Zurbáran
.
Perdi a fé nas religiões em algum lugar
que hoje já não me ocorre retornar para recuperar. Porém, essa perda não me fez
menos admirador da arte religiosa ou da cultura artística nascida das
religiões. As expressivas e extasiantes representações das cenas bíblicas
feitas por Caravaggio, como a crucificação de São Pedro, os tormentos de Santo
Antão de Michelangelo, o simbolismo mágico das imagens intensas de Francisco de
Zurbarán, jamais me foram indiferentes. Estou de acordo com José Ricardo, que acredita que: "A
arte religiosa não é patrimônio de qualquer religião ou igreja mas patrimônio
da humanidade".
7
de
maio
O longo baile dos amantes.
.
A longa tradição das histórias de amor
que a literatura nos legou sempre envolveram amores impossíveis. Romeu e
Julieta, Tristão e Isolda, Cyrano e Roxane, Ana e Vronsky são apenas alguns
exemplos de uma interminável lista de desencontros. Raramente o amor conjugal
motivou os escritores histórias com algum encantamento lírico. Os dramas
adúlteros ocupam com mais força a cena romanesca. Uma exceção à essa larga
tradição parece ser Cartas a D. do escritor e filósofo André Gorz. O livro
reconta o encontro e os momentos que o escritor partilhou com sua mulher Dorine
em quase sessenta anos de matrimônio. O drama da história fica por conta da
parceria dele ao lado dela durante os piores momentos do estágio de uma doença
degenerativa que prenunciava o fim dos laços que os uniram durante toda a vida.
Num tempo em que relações se liquefazem, onde até o amor é líquido, histórias
como essa rareiam e provam que boa literatura não se faz apenas com intenções
amorosas ardentes, mas com entrega e devoção a coisa amada.
"Nossa história começou
maravilhosamente, quase um amor à primeira vista. No dia em que nos
encontramos, você estava acompanhada de três homens que pretendiam jogar pôquer
com você. Você tinha cabelos auburn abundantes, a pele nacarada e a voz aguda
das inglesas.
Tinha acabado de chegar da Inglaterra, e
cada um dos três homens tentava, num inglês sofrível, captar a sua atenção.
Você se mantinha soberana, intraduzivelmente witty, bela feito um sonho. Quando
nossos olhares se cruzaram, eu pensei: "Não tenho chance nenhuma com
ela". E logo soube que o nosso anfitrião já a havia prevenido: "He is
an Austrian Jew. Totally devoid of interest".
Um mês depois cruzei com você na rua,
fascinado por seus passos de dançarina. Depois, numa noite, por acaso, eu a vi
de longe, saindo do trabalho e descendo a rua. Corri para alcançá-la. Você
andava rápido. Tinha nevado. O chuvisco fazia cachos nos seus cabelos. Sem pôr
muita fé, eu a convidei para dançar. Você simplesmente disse sim, why not. Era
23 de outubro de 1947.
Meu inglês era desajeitado, mas
passável. Tinha se enriquecido graças a dois romances americanos que eu acabara
de traduzir para a editora Marguerat. Durante essa nossa primeira saída,
percebi que você havia lido um ito, antes e depois da guerra: Virginia Woolf,
George Eliot, Tolstói, Platão...
Falamos de política britânica, das
diferentes correntes dentro do Partido Trabalhista. De imediato, você já sabia
distinguir entre o que é acessório e o que é essencial. Diante de um problema
complexo, a decisão a tomar sempre lhe parecia óbvia. Você tinha uma confiança
inabalável na justeza dos seus julgamentos."
(...)
5
de
maio
O belo consolo
O poeta e romancista alemão Hölderlin escreveu: “O
belo consolo de encontrar em uma alma o meu mundo, de abraçar em uma imagem
amiga toda a minha espécie.”. O que pode querer dizer essa frase soube há dias atrás quando vi uma menina de 14 anos lendo Fahrenheit 451. Não posso descrever o meu
contentamento. De repente me peguei pensando irmanado em espírito literário com
aquela jovem. Quase não contive o impulso de lhe saudar dizendo: minha irmã,
minha igual.
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