O longo baile dos amantes.

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A longa tradição das histórias de amor que a literatura nos legou sempre envolveram amores impossíveis. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Cyrano e Roxane, Ana e Vronsky são apenas alguns exemplos de uma interminável lista de desencontros. Raramente o amor conjugal motivou os escritores histórias com algum encantamento lírico. Os dramas adúlteros ocupam com mais força a cena romanesca. Uma exceção à essa larga tradição parece ser Cartas a D. do escritor e filósofo André Gorz. O livro reconta o encontro e os momentos que o escritor partilhou com sua mulher Dorine em quase sessenta anos de matrimônio. O drama da história fica por conta da parceria dele ao lado dela durante os piores momentos do estágio de uma doença degenerativa que prenunciava o fim dos laços que os uniram durante toda a vida. Num tempo em que relações se liquefazem, onde até o amor é líquido, histórias como essa rareiam e provam que boa literatura não se faz apenas com intenções amorosas ardentes, mas com entrega e devoção a coisa amada.

"Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista. No dia em que nos encontramos, você estava acompanhada de três homens que pretendiam jogar pôquer com você. Você tinha cabelos auburn abundantes, a pele nacarada e a voz aguda das inglesas.

Tinha acabado de chegar da Inglaterra, e cada um dos três homens tentava, num inglês sofrível, captar a sua atenção. Você se mantinha soberana, intraduzivelmente witty, bela feito um sonho. Quando nossos olhares se cruzaram, eu pensei: "Não tenho chance nenhuma com ela". E logo soube que o nosso anfitrião já a havia prevenido: "He is an Austrian Jew. Totally devoid of interest".

Um mês depois cruzei com você na rua, fascinado por seus passos de dançarina. Depois, numa noite, por acaso, eu a vi de longe, saindo do trabalho e descendo a rua. Corri para alcançá-la. Você andava rápido. Tinha nevado. O chuvisco fazia cachos nos seus cabelos. Sem pôr muita fé, eu a convidei para dançar. Você simplesmente disse sim, why not. Era 23 de outubro de 1947.

Meu inglês era desajeitado, mas passável. Tinha se enriquecido graças a dois romances americanos que eu acabara de traduzir para a editora Marguerat. Durante essa nossa primeira saída, percebi que você havia lido um ito, antes e depois da guerra: Virginia Woolf, George Eliot, Tolstói, Platão...

Falamos de política britânica, das diferentes correntes dentro do Partido Trabalhista. De imediato, você já sabia distinguir entre o que é acessório e o que é essencial. Diante de um problema complexo, a decisão a tomar sempre lhe parecia óbvia. Você tinha uma confiança inabalável na justeza dos seus julgamentos."

(...)

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