O politicamente correto e a literatura


Suas dificuldades com Delphine Roux começaram no primeiro semestre em que ele voltou a dar aula, quando uma de suas alunas, que por acaso era uma das prediletas da professora Roux, foi procurá-la, como chefe do departamento, para se queixar das peças de Eurípides incluídas no curso de tragédia grega dado por Coleman. Uma das peças era Hipólito, e a outra era Alceste; a aula, Elena Mitnick, achava que essas obras “depreciavam as mulheres”.

            “Então o que é que eu vou fazer para agradar a senhorita Mitnick? Retirar Eurípides da minha lista de leituras?”

            “Absolutamente. Está claro que tudo depende do modo como você ensina Eurípides.”

            “E qual é”, perguntou ele, “o método recomendado hoje em dia?” pensando, naquele exato momento, que para aquele tipo de discussão ele não tinha nem a paciência nem a civilidade necessárias. “A leitura equivocada que a senhorita Mitnick faz dessas duas peças”, dizia Coleman a Delphine, “está fundada em preocupações ideológicas tão estreitas e provincianas que não dá para ser corrigida.”

            “Então você não nega o que ela fiz - que você não tentou ajudá-la.”

            “Uma aluna que me diz que eu falo com ela numa ´linguagem falocêntrica´ não pode mais ser ajudada por mim.”

            “Então”, disse Delphine, sorrindo, “o problema está aí, não é?”

            Ele riu - espontaneamente, mas também com um objetivo. “É? O inglês que eu falo não é sutil o bastante para uma inteligência tão refinada quando a da senhorita Mitnick?”

            “Coleman, você está a muito tempo fora da sala de aula”.

            “E você até hoje não saiu dela. Minha cara”, disse ele, escolhendo bem as palavras, com um sorriso calculadamente irritante, “passei a vida inteira lendo essas peças e pensando nelas”.

            “Mas nunca da perspectiva feminista da Elena”.

            “Tampouco da perspectiva judaica de Moisés. Tampouco da perspectiva nietzschiana sobre a perspectiva, tão na moda atualmente”.

            “Coleman Silk é a única pessoa na face da Terra que só tem uma perspectiva: uma perspectiva literária pura e desinteressada.”

            “Quase sem exceção, minha cara” - outra vez? E por que não? - “nossos alunos são de uma ignorância abissal. A formação deles é de uma ruindade inacreditável. Eles levam uma vida marcada pela esterilidade intelectual. Eles chegam sem saber nada, e a maioria deles vai embora sem saber coisa alguma. E o que eles menos sabem, quando se matriculam no meu curso, é como ler o teatro clássico. Lecionar na Athena, principalmente na década de 90, ensinar para a geração que é de longe a mais burra da história dos Estados Unidos, é a mesma coisa que subir a Broadway lá em Manhattan falando sozinho, só que, em vez das dezoito pessoas que ouvem você na rua falando sozinho, aqui estão todas na mesma sala de aula. O grau de conhecimento desses alunos é, sacou, tipo assim, zero. Depois de quase quarenta anos lidando com esse tipo de aluno - e a senhorita Mitnick é bem típica - posso lhe afirmar que nada poderia ser pior para eles que uma leitura de Eurípides com uma perspectiva feminista. Apresentar aos leitores mais ingênuos uma leitura feminista de Eurípides é uma das melhore maneiras que se podem imaginar de desligar o raciocínio deles antes mesmo de ter oportunidade de começara demolir o primeiro ´tipo assim’ deles. Chego a achar difícil acreditar que uma mulher instruída, com uma formação acadêmica francesa como a sua, seja capaz de acreditar que existe uma leitura feminista de Eurípides que não seja pura bobagem. Será que você realmente se converteu em tão pouco tempo, ou será apenas uma manifestação do tradicional carreirismo ditado pelo medo das suas colegas feministas? Porque se for mesmo carreirismo, por mim tudo bem. É uma coisa humana, eu compreendo. Agora, se for um compromisso intelectual com essa idiotice, então eu estou pasmo, porque você não é nenhuma idiota. Porque você é uma pessoa instruída. Porque na França ninguém na École Normale levaria essa bobajada a sério. Será possível? Ler duas peças como Hipólito e Alceste, depois ouvir uma semana de discussões em sala de aula sobre cada uma delas, e no fim não ter nada a dizer sobre as duas peças além de que são ´degradantes para as mulheres´- isso não é ´perspectiva´ coisa nenhuma, meu Deus - isso é abobrinha. Abobrinha da moda”.

            “A Elena é uma aluna. Ela tem vinte anos de idade. Ela está aprendendo.”

            “Sentimentalizar aluno não fica bem em você, minha cara. Leve seus alunos a sério. A Elena não está aprendendo. Ela está repetindo que nem um papagaio. E se ela foi procurar logo você é porque provavelmente ela está repetindo o que ouviu de você.”


*Excerto  do livro a Marca Humana do escritor americano Philip Roth. Em breve escreverei sobre o livro...
           

11-S ou o dia em que a anemia moral se alimentou da hipocrisia

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Há uma semana, a mídia brasileira -ao menos aquela de costume- não faz outra coisa a não ser bajula os EUA. Como se no restante do mundo não estivesse acontecendo nada de relevante, a imprensa voltou todos os seus holofotes, (não posso deixar de pensar que o que estar acontecendo seja um show de prestidigitação) para cobrir os 10 anos do atentado que botou abaixo um dos símbolos do poder de uma nação que até então se achava invulnerável.

As comoventes homenagens que estão sendo prestadas às vitimas dos atentados de 11 de setembro, não escondem o fato de que, até agora, nada de concreto foi feito para impedir que o ódio provoque cenas ainda mais tenebrosas do que aquelas ocorridas há dez anos. Pelo contrário, os EUA, apoiados no medo promovido pelas imagens que correram o mundo ao vivo -e que agora, mais uma vez voltam às retinas de bilhões de espectadores - recrudesceram sua política expansionista baseados nas falsas premissas de que estavam se defendendo dos invasores bárbaros. 

A legitimidade das invasões ao Iraque e ao Afeganistão, bem como as inumanas prisões de Abu Ghraib  e Guantánamo,  nunca foi questionada pelas nações hegemônicas, que preferiu ignorar a arbitrariedade de sua maior potencia militar ao invés de censurar as ações que ainda hoje estão em curso. O que os americanos pranteiam hoje foi o que eles semearam ontem.

¡Gracias, España!

CRIADOR E CRIATURA
FOTO DIVULGADA POR AGUSTÍN ALMODÓVAR/EL DESEO
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TÉO JÚNIOR
Pedro e Antonio no lançamento de “A Pele que Habito”. Um reencontro de dois astros 20 anos depois

Quando se fala da Europa, imagino que as pessoas tenham uma certa inclinação em primeiro lugar pela França, depois, talvez, pela Inglaterra?, em seguida, quem sabe, pela Itália? Culturalmente todos esses países deram sua contribuição para a humanidade, todavia somos um povo que vivemos de fazer escolhas. Gosto dessa brincadeira de atribuir notas, de eleger. Admiro o glamour e a sofisticação que sempre inspiraram a França, o poder real inglês, esses casamentos de conto-de-fadas que paralisam o mundo – não vi o de Kate – e aprecio também a beleza extraordinária dos italianos, o que me remete de imediato ao Renascimento e aos quadros estupendos de Caravaggio etc. Mas, apesar de ter respeito por todos esses, o país que mais amo é a Espanha. Admirar é uma coisa. Amar é outra. Não sei o verdadeiro motivo. Não tanto por ela ter nos legado um Picasso, um Galdí, um Lorca, um Dom Quixote, o que já seria louvável - mas pelo cinema de um senhor chamado Pedro Almodóvar Caballero. Fiquei instigado em falar sobre a Espanha, depois que Rogério disse preferir, entre todas, a cultura francesa, destacando-se as mulheres, cultas e lindas. 

Admito, sem um pingo de constrangimento, que meus conhecimentos sobre cinemas são escassos. Evidentemente, sei distinguir um Fellini de um James Cameron, por exemplo (não sou tão estúpido!) mas minha bagagem cinematográfica encerra-se pouco acima da base de uma pirâmide. Mas foi Pedro quem me despertou o interesse por essa extraordinária arte e, atrelado ao estilo “almodovariano”, sua língua, razão pela qual venho estudando sistematicamente o idioma, falsamente identificado com o português, pois as duas línguas têm mais diferenças do que semelhanças. Sou grato ao artista Pedro por me fisgar assim de um modo tão avassalador e tão incrivelmente fascinante. 

Como o conheci? Assistindo a um filme pouco expressivo, mas carregado de tensões. Chama-se Tacones Lejanos, tradução para o português: De Salto Alto (1992). E por que Almodóvar é tão bom? Porque ele é versátil. Não se prende a um estilo único, e paradoxalmente, tem o poder de deixá-los em todos os filmes. É um e ao mesmo tempo, muitos. Não é somente pelo colorido exacerbado, pelas paixões labirínticas e pelo fato de suas criaturas explodirem de desejo que ele é excelente. Há as situações triviais do cotidiano, como uma cena em Volver (2005), onde Raimunda (a melhor personagem que Penélope Cruz ganhou na vida), naturalmente, abaixa a calcinha para fazer xixi. Seu talento criador vai além desses detalhes. Quando quis denunciar, Almodóvar filmou uma Má Educação inesquecível; quando quis fazer um drama familiar, criou uma obra-prima chamada Tudo Sobre Minha Mãe. Quando quis anarquizar, fez um filme neurótico, mas nem por desprezível, Kika. Quando quis falar da sensibilidade humana, dirigiu Fale com Ela, que dispensa apresentações. Nenhum diretor brasileiro – nenhum! – faz concorrência a Pedro. É, certamente, um dos maiores do mundo e um mito para muitos. 

Por fim, quero abordar A Lei do Desejo, de 1987 que, ao lado do arrebatador Carne Trêmula, foi o filme dele que mais me marcou. Lá veremos Antonio Banderas – numa cena curiosa: seu personagem Antonio, sendo penetrado por um diretor de cinema por quem está perdidamente apaixonado, o famoso Pablo Quintero (Eusébio Poncela, feiíssimo, por sinal). Banderas deu uma entrevista, se não me engano em Nova York, dizendo que foi um “homem de sorte”: “Cheguei aos Estados Unidos com 25 filmes no currículo”, sendo A Lei do Desejo um dos últimos antes de ir embora. 1988 foi especialmente extraordinário na carreira de ambos: foi o ano de Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, que chegou a concorrer ao Oscar e ecoou o nome de autor e intérprete nos quatro cantos. Banderas fez uma belíssima carreira em Hollywood, depois ainda atuaria em Ata-Me! (1990), em sua terra natal, muito bem avaliado por crítica e público. Almodóvar seguiu falando de sua querida Madri, Banderas tocou a vida na América e o reencontro entre criador e criatura aconteceu agora, duas décadas depois, quando está em cartaz A Pele que Habito. Dois verdadeiros astros. Dois talentos que nós, espectadores, ajudamos a consagrar.  Estou curioso para assistir Almodóvar no cinema, pois a última vez que isso aconteceu foi em 2009, em Aracaju, num filme que julguei substancialmente fraco, Abraços Partidos. 

Almodóvar é sempre muito gratificante, e com certeza um mestre em jogar nos olhos dos seus fãs doidas aventuras, muitas reviravoltas, muito suspense, muitas surpresas. Seu cinema é superlativo. 

Gostaria que Rogério visse A Pele Que Habito e escrevesse sobre ele. Também pediria aos leitores do blog que vejam o filme, e comentassem este que será o 18º. longa de Pedro, que, no começo de sua carreira, em 1980, dados os seus enredos,  envergonhava uma Espanha ainda puritana e moralista, e hoje, enche o país de orgulho. “Ele é a pessoa mais inteligente que já conheci na vida!”, disse certa vez a grande Carmen Maura (atriz maravilhosa, que, aliás, esteve magnífica em A Lei, quebrando a mobília do quarto com um machado, para exorcizar seus demônios, ao som de Ne Me Quitte Pas.) Que bom que essa inteligência pôde ser compartilhada com o mundo.  

Minhas férias estão quase acabando – que pena! – e, da Paulicéia Desvairada, sempre que a ocasião requerer, escreverei minhas crônicas aqui. Se o proprietário deixar. 

Infâmias literárias


As pessoas lêem na internet qualquer bobagem atribuída a um grande escritor e saem reproduzindo alegremente aquilo pelas redes sociais, sem certificarem a autenticidade do escrito. A elas basta crer que, aquele autor, que todos dizem ser um exemplo literário, gênio da criação artística, foi capaz, do alto de sua grandeza, de produzir infâmias que estão ao nível delas.

Minha praia


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Fonte aqui

NOTA DE REPÚDIO AO SITE “IGUANAMBI”

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Lá, a política é a do quem paga mais
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Por TÉO JÚNIOR


 
O site iGuanambi, é, provavelmente, a mídia eletrônica mais visitada da microrregião, porque divulga notícias tanto do âmbito local como nacional (algumas delas reproduções de outras fontes), publica festas fúteis, cerimônia de 15 anos de gente que, desprovida de fama e de talento, paga para aparecer (hello Val Merchiori!), faz cobertura completa do show de Daniel, artista medíocre etc. Há também um espaço, digamos, interativo, onde se leem recados para o dono da farmácia, publica-se os aniversariantes do dia, desabafos, críticas, sugestões etc. Eu sempre suspeitei dessa mídia de interior no sentido em que, recebendo dinheiro de algum patrocinador ou de algum político influente, vete, sistematicamente, aquilo que vai contra seus interesses, ainda que as informações sejam corretas. Onde o dinheiro fala mais alto, não se pode esperar independência nem credibilidade porque, destarte, a verdade morre na praia, quando ela desabona que pode amordaçá-la.

Estando em férias em Caetité – a mídia daqui deve ir pelo mesmo caminho (se o iGuanambi faz, por que as demais não poderiam?) – paguei 20 reais para assistir ao espetáculo Baianidade Baiana, e essa apresentação gerou uma crítica (dessas honestas e sinceras) que, uma vez ou outra, alguém se disponibiliza a fazer: eu. Escrever é um trabalho, não um mero passatempo. O mais surpreendente é que o site vetou o texto, argumentando que o mesmo feriria um acordo feito entre ele e os produtores, que não aceitam críticas justas em relação ao evento. Porém, devo lembrá-los que teatro é prestação de serviço, portanto sujeito a críticas e a elogios, a depender da competência de quem o faz.

Um trecho de minha análise diz exatamente assim: a crítica se faz fundamental, pois entendemos que o papel dela não pode ser o da complacência ou o da subserviência em relação ao elenco, como normalmente acontece nas divulgações feitas pela mídia, sem critério algum. O site vestiu a carapuça e deve ter levado um baque – pois é exatamente isso o que ele faz. Acertei.

Se o iGuanambi recusasse a publicação com uma justificativa razoável, alegando, por exemplo, que o texto estivesse mal escrito, ou despropositado, eu nem ficaria triste. Sinceramente, não. Iria refazer o trabalho, e, auxiliado por alguma pessoa mais capacitada do que eu, analisaria as possíveis falhas. iGuanambi não aceitou o texto porque (a fonte é quente) produtores do espetáculo pagaram ao site, ou seja, um contrato foi assinado no intuito de se divulgar o evento. Havendo esse consórcio, o site então não autorizou a publicação da crítica, porque iGuanambi considerou que ela “fere” sensibilidades, havendo, assim, uma “quebra” de acordo.

Nesse exercício salutar de publicar ensaios e crônicas sobre teatro, a arte que mais admiro, tenho muito orgulho de 1) brigar pelos meus textos; 2) nunca, em hipótese alguma, vender nem comprar espaço para divulgar meu nome, porque não preciso disso. Sei de meu valor; 3) prossigo na batalha incansável de ver o maior número possível de espetáculos, de escrever, mesmo enfrentando portas fechadas, que poderiam, voluntariamente, acolhê-lo.  

O blog Navegantes ao Mar publicou com carinho a crítica – porque ele é livre. Não seria o caso de o iGuanambi ficar orgulhoso porque alguém escreveu a respeito de um evento patrocinado por ele mesmo? As pessoas que eventualmente visitam o site conhecem essa política do toma-lá-dá-cá?

Pode parecer que eu esteja ressentido porque meu texto foi solenemente recusado. Não é verdade. Leiam e esqueçam-se de que foi escrito por mim. Analisem a mensagem, e não o mensageiro. E vá ao site iGuanambi e compare os textos que estão lá. Enquanto essa mídia que está aí exercer esse tipo de papel, ela será de pouquíssima utilidade pública, sem qualquer razão para existir. O material vetado enobreceria o site, tão carente de conteúdo, independentemente de ter sido feito por mim ou por qualquer outro.

Determinadas pessoas detêm o poder: umas, o de pagar pelo que lhe for mais conveniente. Outras, o poder de gerir o dinheiro recebido. Uns, de subornar. Outros, de vender-se. Nós, em nossa humildade, temos também o nosso poder: o de pensar, o de raciocinar por conta própria. O poder de termos nossa consciência e usá-la, para chancelar nossa profissão. Temos o poder da palavra – isso ninguém poderá amordaçar.

O dramaturgo Federico García Lorca, o maior da Espanha, que fora assassinado pela ditadura Franco em 1936, ainda teve de ouvir um ultimato que se revelou profético: seu carrasco, ao disparar um tiro em sua nuca, teria dito: “Uma caneta na mão deste homem é mais poderosa que uma arma!”

Nunca me esqueço da maneira como Odorico Paraguaçu, o prefeito malandro de Sucupira, tratou a mídia que lhe fazia acusações: classificou-a de “marronzista”. Acontece que ele também criou um jornal, a Folha de Sucupira. Essa, sim, era a “imparcial”. Essa retórica humorística e maravilhosa se encontra no livro Odorico na Cabeça (edit. Círculo do Livro, 1983) do excepcional Dias Gomes. Até quando iremos inverter os valores? 

Parece insignificante, a recusa de um texto comum. Não é. Atrás dela, existe uma política, um mercado, um establishment; daí verifica-se, sem dificuldade, como as coisas caminham. Se algo na sua aparência desprovido de valor (uma apreciação crítica) fora recusado, é de se supor que textos ainda mais complexos, mais profundos, de uma envergadura ainda maior terão o mesmo destino. “Até hoje não germinou instituição mais nociva do que o dinheiro” – nos diz Creonte, o tirano de Antígona. É triste.

"FOLHA DE SUCUPIRA"

O prefeito Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), em "O Bem-Amado", que criou um jornal para elogiar a si mesmo. Quando um poder faz as pazes com a mídia, alguma coisa está errada.

MESTRE AUTRAN

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Por TÉO JÚNIOR

Esse espaço homenageia de forma singela a decisão da Presidente da República Dilma Rousseff por ter oficializado o grande Paulo Autran como “Patrono do Teatro Brasileiro”. A publicação está no Diário Oficial do mês de agosto. 

Pode parecer insignificante um reconhecimento tão simples, que não representa nenhuma gratificação em dinheiro para herdeiros do grande ator, morto há 4 anos, mas o respeito e agradecimento que essa decisão traz. É preciso que se faça justiça a um grande brasileiro, e ainda mais quando se trata do maior ator do país.

Qualquer decisão que venha do poder deve ser recebida com cautela, já que se montou em Brasília um legítimo picadeiro onde noções de valores morais, de ética, de idoneidade etc. estão amiúde se nivelando para baixo. Um reconhecimento que chega, ainda que postumamente, de forma justa em relação à memória de um artista. 

Felizmente, Paulo Autran não precisou morrer de velho para ser lembrado. Em vida, foi saudado como o principal nome do nosso palco e rivalizava apenas com Fernanda Montenegro na primazia de ser o maior ator do Brasil. Recebera diversas homenagens em vida, em gratidão às 90 peças que montou, sendo Shakespeare o autor mais constante de seu currículo. 

Não se pode, todavia, descansar sobre os louros, pois existe o risco de se ficar acomodado. É o que chamam comumente de “zona de conforto”. Paulo trabalhou a vida inteira e não se iludiu com o sucesso. Identificava-se com o teatro, apenas. Esnobou a televisão e o cinema, embora às vezes estivesse lá também. No entanto, sua mais visceral paixão foi, reiterando, o palco. 

Em 1996 decidiu montar Rei Lear. Recebeu patrocínio de mais de 1 milhão de reais, pois não se pode trabalhar com um artista deste quilate com mixaria. 1 milhão de reais para ser investido numa peça parece caro – e é. Mas é preciso levar em conta também a relevância do espetáculo. Paulo arranjou o dinheiro sem dificuldade. Lembro-me bem quando escrevi um texto em Aracaju cobrando do governador Déda dinheiro para o teatro, argumentando para ele que “teatro é verba”. Estão vendo aí?

Além de ator, Autran viveu nos turbulentos anos da ditadura militar, onde a liberdade de expressão e as artes eram cerceadas e boicotadas pelos poderosos da hora, sob a alegação falsa de que estas últimas eram obras “subversivas”, portanto “prejudiciais” ao público. Quem tinha o que dizer, teve de se calar, sob risco de punições maiores. Paulo foi um defensor intransigente da liberdade e do respeito pela categoria da qual fazia parte: a dos atores. Chamou para si a responsabilidade, ao invés de delegá-la a terceiros. Em 1965, com o espetáculo Liberdade, Liberdade, de Millor Fernandes e Rangel, percorreu o país para falar de algo que já não existia totalmente no Brasil. Não adianta ter liberdade “mais ou menos”, um “pouco” de liberdade. A liberdade deve ser total, irrestrita. Em Alagoas, representou o espetáculo, contrariando a decisão do então governador Simeão Filho. Pressionado por manifestações estudantis, com o apoio da Universidade Federal daquele estado, ele liberou a peça, e os alagoanos, assim, puderam assistir ao extraordinário ator no Teatro Marechal Deodoro, como atesta a foto abaixo. Quem viu, viu. Uma experiência única, irrepetível. Venceu o teatro. 

Salve Paulo Autran. Maravilhoso como ator e como ser humano consciente de seu ofício.

Os alunos de Maceió, que batalharam para ver Paulo Autran no palco, fizeram uma placa homenageando o ator que se apresentou no Teatro Marechal Deodoro, o principal da cidade, com a peça Liberdade, Liberdade, contrariando a decisão do governo.   

A Estação da Liberdade?

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Ninguém sabe ainda ao certo, o que esperar dos levantes no mundo árabe. Haverá ali um dia algo parecido com uma democracia? Deposto o ditador; Líbia, Egito e outros países, correm o risco de repetirem o mesmo script do passado, e do meio do levante ver surgir ao invés de um governo, surja um déspota.  

Ninguém ousa palpitar sobre o futuro da região. Porém, de tudo isso, podemos tirar uma grande lição. A tirania e o despotismo, como tudo na vida, um dia expira. É lamentável que um homem tenha que suportar os desmandos e a violência continua desses sádicos chamados, ditadores. Gerações e mais gerações, em todo mundo árabe cresceram amordaçados por esses regimes sufocantes. Patrocinados muitas vezes pela covardia e ganância do mundo Ocidental.

Alegra-me ver as cenas de perseguição do povo Líbio ao seu antigo governante. Kadafi deve está sentindo agora a agonia que ele empreendeu a muitos de seus opositores. Caçado como um rato sujo, ele deve está em algum buraco, (como Saddan Hussein quando foi encontrado) assaltado pela culpa e o remorso.  

Poesia, Vida e Morte



João Cabral de Melo Neto é um poeta deslocado da tradição lírica dominante na literatura brasileira. O vigor de sua obra vem do exercício rigoroso da racionalidade imposta na construção dos seus versos. 

Contrafeito a todo transbordamento melancólico e ao psicologismo discursivo, ele segue as lições de Mallarmé de que não se fazem versos com ideias, sentimentos, ou proposições, mas sim com palavras.

Sua literatura se funda na realização concreta dum universo poético onde rigor de construção e riqueza de significação, se interpenetra e se complementam; razão pela qual, sua poesia feita de coisas, se orienta como forma de significar o mundo pelos elementos do mundo. 

Essas características fogem à média de uma tradição poética estabelecida no predomínio do “sentimental-confecional”, e formam um corpo estranho no percurso de nossas letras. Nossos mais destacados poetas, sempre optaram do romantismo até hoje, em explorarem o interior de si mesmos, se perdendo num labirinto de remoço, dores, queixas e muita desilusão. 

Ler a obra de João Cabral e se sentir animado, vivo, é coisa fácil. Dele, a gente sai revigorado, e certo de que ao homem, cabe bem mais do que apenas lamber as suas chagas. Cabe, acima de tudo, encarar os desafios impostos no percurso sinuoso que nos leva, invariavelmente, a “indesejada das gentes”, com destemor. 

A poesia cabralina nos ensina que a vida está sempre por um fio. Ela não se dá, tem que ser tomada. Como a poesia que ele fez e entendeu, ela não vem sem luta. Como os toureiros ameaçados pelo chifre do touro, sob o olhar de uma plateia implacável, a vida é um esquivar-se dos golpes mais violentos até o dia em que a lança do animal vença a lança do homem. 

Segue um poema exemplar de João Cabral sobre sua vida e sua poesia:
ALGUNS TOUREIROS
A Antônio Houaiss

Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.


ACARAJÉ, AXÉ E MUITA PREGUIÇA

Foto: Divulgação
“Baianidade Baiana”: mais um espetáculo
calcado nos estereótipos fáceis
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Téo Júnior*
teo.camp@hotmail.com

Numa cidade como Caetité, cuja tradição teatral é paupérrima, é um alento saber que um espetáculo foi exibido em três sessões, ainda que montado num espaço pequeno, como é o caso do Cine Teatro Anísio Teixeira (Pç. da Catedral, Centro). Nessas raríssimas ocasiões, a crítica se faz fundamental, pois entendemos que o papel dela não pode ser o da complacência ou o da subserviência em relação ao elenco, como normalmente acontece nas divulgações feitas pela mídia, sem critério algum; tampouco a crítica deva destruir um espetáculo, pura e simplesmente. Ela não existe para esses fins. No entanto, sua obrigação é a de analisar – sempre – com justiça aquilo que é oferecido ao público.

Não raro, as comédias apresentadas (muitas a preços populares, inclusive) estão calcadas sobre estereótipos, e os artistas perseguem o nobre objetivo de, sorrindo, refutá-los, já que esses estereótipos – e ninguém há de discordar – são gerados sobre ideias preconcebidas e alimentados pela ignorância. Assim sendo, faz-se necessário rechaçá-los a qualquer custo. Algumas dessas idéias, todos nós já conhecemos: baianos preguiçosos, nordestinos atabalhoados em cidades grandes, gays afetados excessivamente, loiras estúpidas etc. A regra não se aplica aqui, porém. Dir-se-ia que eles (Marcos Lima e Marcos Magno) se incomodam muito pouco com críticas em relação à sua cultura, e ambos a proclamam até com certo orgulho. Não é sempre assim.

O título da peça por si só já soa estranho, porque redundante: “Baianidade Baiana” (sic!), embora o tema nos interesse, num momento em que se discute até que ponto essa “guetificação” cultural é apropriada ou não. Qual seria a melhor identidade? A mais bonita? A “baianidade”, talvez? A “sergipanidade”?  A “mineiridade”? Assim sendo, analisamos por uma ótica separatista, como se esses locais fossem ilhas e não partes de um todo, de um painel diversificado e rico em múltiplos aspectos, como é o Brasil. Aliás, o próprio conceito de “brasilidade” está há muito batido, desde o surgimento – lá no Modernismo – de Tarsila do Amaral, conforme assinalou Mário de Andrade, que caracterizava seus quadros  como sendo a representação da “realidade nacional”.

Rodando a baiana – Abriu-se espaço para imitações de artistas, mencionando-se as diferenças abissais de classes, a negritude, o acarajé com pimenta, a sexualidade sem culpa, o linguajar por vezes tosco, mas autêntico e piadas. Ao final, ambos irmanaram-se com o auditório a fim de que nós, talvez não mergulhados suficientemente nesse universo quanto eles, adivinhássemos as músicas lembradas e por aí vai. É evidente que esse trabalho não é tão simples e eles provaram ser bons comediantes, mas o que a dupla realiza não pode ser considerado teatro, no sentido mais genérico do termo. Às vezes, existiam os diálogos, eles estavam lá, incisivos ao extremo – porque um assunto puxa outro – mas sempre caricaturais, é claro; todavia na maior parte da peça o que tivemos foi o famoso stand-up. Em suma, trata-se mais de um humorístico no estilo “A Praça é Nossa” do que propriamente de uma peça teatral.

O momento em que a sonoplasta (não foi informado o nome) interrompeu a apresentação a fim de se eximir das falhas incríveis do som que ela operava, foi de uma estupidez sem tamanho, e “Baianidade Baiana” pecou, assim, pelo menos na sexta-feira, pela falta de cuidado. Mas nesses casos, como eles se abrem a todo tipo de improvisação, não se considerou o descuido uma grande falha, pois ele não chegou a atrapalhar em nada.

A responsável pela peça foi a “Companhia Baiana de Risos” e a direção é de Alberto Damit e Marco Antonio Lucas. Ingressos: 20 reais.

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* Graduado em letras pela UNEB, foi professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) atualmente desenvolve Projeto de Mestrado cujo tema é a dramaturgia de Nelson Rodrigues. É pesquisador de teatro. 

O politicamente correto é uma bosta

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Em nome da ordem, do decoro e harmonia social, há tempos a onda do politicamente correto tenta restringir as liberdades individuais e instaurar uma sociedade pautada pela assepsia ideológica, linguística e comportamental. O resultado tem sido catastrófico. Ninguém mais consegue pensar sem se sentir vigiado. Ninguém mais expõem suas opiniões livremente sem ser acusado de coisas que nunca foram. Há sempre o risco, involuntário, de se estar melindrando a sensibilidade de alguém, e com isso sofrer as piores recriminações. O excesso de regras e restrições, a que estamos sendo submetidos, infantiliza a sociedade e não garante o respeito a quem quer que seja. Pelo contrário, tutelar as pessoas, como fazia os regimes totalitários cria uma sociedade insuportável de se viver.

Contos e Fábulas do Brasil



Contos populares do sertão e do mundo
No Brasil, não são muitas as coletâneas de contos populares, apesar da alardeada riqueza da nossa cultura popular e do empenho de estudiosos, como Sílvio Romero, Câmara Cascudo e Lindolfo Gomes. A publicação de Contos e fábulas do Brasil, pela editora Nova Alexandria, se reveste, por isso, de grande importância. Coligidos por Marco Haurélio, estes contos da tradição oral brasileira estão agora imortalizados em um livro que conta, também, com belíssimas ilustrações do artista plástico paraibano Severino Ramos.
A coletânea traz contos de animais, histórias de encantamento, religiosas e acumulativas. Há, ainda, notas esclarecedoras, assinadas pelo renomado pesquisador português, Paulo Correia, da Universidade do Algarve, mostrando o percurso das histórias, o número de versões existentes nos países de língua portuguesa e os similares de outros países.
Marco Haurélio, também, na abertura de cada seção, amparado em ampla pesquisa, num trabalho que dosa rigor e criatividade, aponta variantes das histórias colhidas por ele em outras coletâneas e até o reaproveitamento de muitas delas na literatura de cordel. Os leitores da obra dos Irmãos Grimm identificarão em Maria Borralheira a versão brasileira de Cinderela. E reconhecerão em O príncipe Teiú elementos da clássica história A bela e a fera e do conto mítico Eros e Psiquê, que integra O asno de ouro, escrito por Apuleio no século II d.C.
Segundo a professora Isabel Cardigos, referência mundial no estudo do conto popular, Contos e fábulas do Brasil, é “um livro fadado para ter a maior sorte: entre os adultos e entre aquelas crianças felizes a quem os adultos vão saber recontar estas histórias para que, com a ajuda da escrita, continue a correr a antiquíssima magia dos contos de tradição oral.”
Sobre o autor: Marco Haurélio, baiano de Riacho de Santana, é escritor, editor e pesquisador da cultura popular brasileira. No campo do folclore, além deste Contos e fábulas do Brasil, escreveu Contos folclóricos brasileiros (Paulus). Para a coleção Clássicos em Cordel, da Nova Alexandria, adaptou A megera domada, de William Shakespeare, e O Conde de Monte Cristo, este um dos vencedores do Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel – edição 2010.

Contos e fábulas do Brasil — Marco Haurélio
Ilustrações de Severino Ramos
ISBN 978-85-7492-265-2
16X23 cm — 216 págs.
Preço: R$ 38,00
Mais informações:
Janaína Gomes
Juliana Messias
2215-6252
Blog do livro:

Blaise Cendrars a Féla Poznanska

Sê bem-vinda. Há muito que ando fugido
do mundo, de celas antigas, domésticas,
por isso sê bem-vinda ao lugar da fuga.
Dou-te a minha mão para que sintas
o nervo nómada, a desmesura de quem parte
em aventura, o tempo que se cumpre
em cada travessia. Dou-te o meu braço
direito porque é nele que o coração
transita, como um comboio que parte
e retorna para poder voltar a partir.

Sê bem-vinda à fome, à miséria,
à solidão que a todos chega e finalmente
pergunta: que fazes aqui? Respondo
à solidão que faço o meu tempo,
nenhum relógio poderá marcar a distância,
nenhum ponteiro indicará o caminho,
seguiremos por onde lutar for resposta,
seremos a espuma dos dias mais belos,
das horas mais livres. Tu e eu, de mãos
dadas, dançando o tempo com fervor,
sem nenhum ruído que nos impeça
a poesia, a música, a liberdade.

Repara: os homens sem escudos
precisam abrigar-se de si próprios,
tudo podem contra o mundo, nenhuma
estação lhes estacionará a fuga.
Talvez descubram um dia na berma
de uma estrada batida, entre o mato
da floresta, numa duna desértica, talvez
aí descubram a sombra que os proteja
do calor insuportável que sobre eles paira
logo à nascença. Trazem dentro uma erupção
contida que só a paciência da espera
poderá suportar. E tu foste essa paciência.

És a mais bela desordem que me aconteceu.
Sentado na estação a observar
famílias inteiras em trânsito, penso
naquele impulso que um dia me impeliu
para fora das quatro paredes de um
quarto frio. Saltei pela janela, corri
sem direcção, corri para onde me levasse
a direcção de apenas correr. O meu destino
eras tu. Tu, pedaço de terra onde ergui
a única morada que me serviu de abrigo.


"A Dança das Feridas" - Henrique Bento Fialho

Não basta olhar tem que enxergar

cena do filme Blow Up
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Em depoimento no documentário, Janela da Alma, o escritor português José Saramago revela-nos como a realidade pode ser uma coisa assustadoramente fabricada, artificial e enganosa aos olhos.  

Estava ele certo dia na ópera de Lisboa ocupando o lugar de sempre, que dava de frente ao palco.  Num outro, por acaso, teve que mudar, e foi sentar-se num dos camarotes contíguos ao palco e lá de cima, a visão que se tinha do palco era reveladora, e foi lá que se deu uma epifania. 

Durante a realização da apresentação outra coisa chamou a sua atenção, bem mais dos que a inebriante música que ocupava o ambiente e distraia os sentidos de todos, com pura beleza e encanto.  

É que do lugar que antes ele ocupava se via um palco que em tudo lembrava a riqueza e o luxo das melhores casas de ópera. A sala ricamente ornada com um largo e vistoso palco sobre o qual pendia uma coroa cheia de brilho e luxo lembrava aos espectadores que aquele lugar reinava a solenidade e o decoro. 

Porém, deslocado seu campo de visão dentro do mesmo ambiente, ele viu que por detrás do palco nobremente ornamentado, um emaranhado de fios, casas de aranhas, sujeira e restos de objetos esquecidos pelo tempo davam ao espaço outra dimensão, que somente a nova posição revelava. 

Dessa visão ele sacou a lição que ensina: para se ter um conhecimento mínimo sobre a realidade e para descondicionar o olhar sobre os objetos, evitando criar sobre eles expectativas fantasiosas, “há que se dar a volta”.    

Esplendida Alucinação. A perplexidade crítica diante da arte contemporânea


Quando os artistas Impressionistas foram hostilizados no salão de Artes de Paris, e depois se tornaram referência, a crítica de arte viveu os anos seguintes com as barbas de molho, receosa de ser comparada aos antiquados e reacionários críticos franceses, que não souberam, ou não quiseram, apreciar os quadros de Cézanne e seus companheiros. 

Amparados na covardia de muitos intelectuais, a arte contemporânea, principalmente depois de Marcel Duchamp e seus ready made, vêm se apoiando nesse temor para endossar suas experiências escatológicas, e fazer do ridículo, matéria prima para suas experiências estéticas e bizarrices. Já chegou a hora da crítica perder esse temor, e começar a reagir aos engodos que insistem em serem chamados de arte, não acham? 

Essa é a proposta do livro O Enigma Vazio: impasses da arte e da crítica do poeta e crítico mineiro Affonso Romano de Sant´anna. Nesse trabalho o crítico encara o desafio de avaliar a “arte” contemporânea de uma perspectiva questionadora de suas contribuições para renovação estética do gênero artístico, simplismente imperdível.

Lucian Freud

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É fato consumado que grande parte do que determina a qualidade de uma obra artística, está relacionado com um conjunto de valores arbitrário, que convencionado por um grupo, passa a ser visto como valoroso pelos demais. Dessa maneira valores como a beleza - relacionada a determinados atributos físicos, por exemplo - estabeleceu, por muito tempo, as qualidades exigida para fazer desse ou daquele quadro, uma obra admirável. 

Muitos artistas, no entanto, alteraram esse consenso e fizeram, a sua maneira, ver que, ao menos em arte, o que é belo e admirável é a capacidade de revelar coisas que a maioria tende a ignorar. 

O último desses grandes mestres foi o pintor alemão Lucian Freud que morreu ontem (20) aos 88 anos. Neto do psicanalista Sigmund Freud, Lucian se notabilizou pelos seus quadros que retravam personalidades, anônimos e a si mesmo, em toda sua fragilidade humana.

Creio haver uma alta dose de verdade em encarar a realidade dessa maneira, sem fantasia, sem subterfúgio, sem mascara.



INSENSATOS CORAÇÕES

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Como a arte literária abordou um dos sentimentos
mais primitivos do ser humano: a vingança
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TÉO JÚNIOR
Colaborador

O Brasil vem acompanhando, nesses últimos dias, na novela Insensato Coração (Globo) os desdobramentos da cruel vingança a que Norma (Gloria Pires) está submetendo o personagem de Gabriel Braga Nunes (Léo) e o ponto em que ela chegou. Assiste-se – não sem uma certa dose de prazer sádico – um dos grandes acertos de contas poucas vezes mostrado de maneira tão contundente numa obra de ficção televisiva. E existem, por incrível que pareça, muitas lições a tirar desse enredo fascinante. 

Léo é um vigarista e um crápula, sem dúvida – mas nessas três semanas vem penando nas mãos daquela a quem ele prejudicou tão profundamente. Léo, posto em cárcere privado, está tão desmoralizado, coitado, que é frequentemente hostilizado até pela empregada da casa, a cretina da Jandira (Cristina Galvão) e também por Ismael (Juliano Cazarré), o ajudante-de-ordem de Norma, cujo cérebro não deve ser maior do que um grão de mostarda. Está sendo sistematicamente humilhado por elementos que, em outra circunstância qualquer, ele certamente desprezaria. 

Léo vem sendo tratado de maneira tão boçal porque não lhe há saída. Submete-se aos caprichos daquela que um dia fora sua amante, porque, inteligente, sabe que a prisão seria ainda mais intolerável. Caso não aceite entrar no jogo dessas pessoas, irá para a cadeia, pois tem consciência clara de que é um criminoso. O objetivo de Norma é, portanto, este: rebaixá-lo ao nível do grotesco, encurralá-lo, fazer com que sua masculinidade e seu brio despenquem até a estaca zero. 

A capacidade de determinados indivíduos de abrirem mão de certos códigos elevados de conduta para firmarem-se como gente que sente dor e que se fere; esse desejo natural do ser humano que, uma vez prejudicado em sua dignidade e que recusa, sistematicamente, a ser títere nas mãos de supostos inimigos, chama-se justiça. 

O teatro, arte a que estou mais ligado, já nos deu provas cabais de que a vingança mais saborosa é a melhor arquitetada. Medeia (431 a.C), tragédia grega de Eurípides, é a mais lembrada, porém não é a única. Vejamos: 

Medeia gemendo – Estou vendo Medeia se debatendo no leito, gemendo, clamando pela morte dia e noite. Sua ama não sabe mais o que fazer. Já não diríamos que Medeia viva; ela vegeta, isso sim. Porque era conveniente para Jasão abandoná-la, pelas benesses, pelas vantagens que teria com um segundo casamento com Glauce, a princesa. Medeia, faceira, conseguira, malandramente, pelo simples fato de ser mulher, ludibriar o marido, a ponto de “se desculpar” com ele, pelo seu inconformismo inicial de esposa traída – para, nesta ocasião, presentear Glauce com um lindo diadema. Ao colocá-lo – maldita hora! – Glauce, infeliz, perecera carbonizada (para usarmos um termo mais leve), transformando-se numa tocha humana. Segundo a descrição que se faz da cena, Glauce ficara tão desfigurada que “o próprio pai teria dificuldade em reconhecê-la”. Não satisfeita, Medeia, furiosa, substituída, abandonada, depois de muito pensar, assassinou seus dois filhos pequenos com uma espada – unicamente com o intuito de ferir Jasão, o pai, à potência máxima. Esquecera-se de que Medeia, a “leoa”, segundo ele, conhecia todos os segredos da magia – dos quais ele mesmo necessitara um dia. 

Eurípedes quer nos dizer com essa obra-prima o seguinte: qualquer mulher, inclusive a mais tola, é capaz de dobrar um marido. Como é fácil enganar um homem. Meu Deus do Céu! 

Dizer que Medeia é uma peça que aborda apenas o fantasma da vingança é muito pouco. Assim pensando, reduzimos seu valor substancialmente. Trata-se, na realidade, de um libelo do qual se extrai o ônus que uma mulher, rebaixada em sua dor dilacerante, precisa pagar, para compensar - ainda que em proporções muito desiguais – uma ingratidão sem tamanho. 

- “Estou pagando” – Destaco outro texto muito interessante e de grande valor artístico do teatro moderno que trilhou, na essência, o mesmo caminho de Medeia. Chama-se A Visita da Velha Senhora (1955), de Friedrich Dürrenmatt, suíço. A montagem brasileira mais lembrada dessa peça recebeu a direção de Walmor Chagas, cuja protagonista fora ninguém menos que Cacilda Becker, lenda do nosso palco – onde contracenou com Sergio Cardoso. 

Eis o perfil de Claire Zahanassian, carinhosamente chamada de “Clarinha”: relapsa na infância, displicente, aluna medíocre, para quem tanto fazia subir como descer – engravidara de um namorado, um cidadão chamado Schill. Tudo bem. Este, para se livrar do fardo da paternidade (indesejável, claro), apresentou em juízo duas testemunhas em sua defesa, cujos depoimentos – confirmados posteriormente - eram falsos, alegando que ele não era o pai daquela criança. “Clarinha” teve de suportar a vergonha de, desamparada, só, amesquinhada, 17 anos de idade, arcar com as conseqüências daquela gravidez. Sumiu de sua terra, caiu na vida, literalmente, para, quase meio século depois, regressar ao vilarejo de Güllen deslumbrante – fútil, é bem verdade – mas riquíssima e famosa. Fala-se que ela é a “mulher mais rica do mundo”. “Clarinha”, aquela, chegou falando grosso e dando as cartas. Para se vingar do homem que lhe fizera sofrer tão profundamente, está disposta a dar à sua terra natal, miserável e decadente, uma fábula em dinheiro, em troca da cabeça dele, Schill, inocentemente, um dos mais animados pela sua volta. Não custa nada a ela, que já possui tudo - entregar ao povo parte dessa fortuna, com a condição de que matem aquele homem. “Pessoa decente é somente quem paga – e eu pago. (Com dinheiro), pode-se comprar tudo – até a justiça”, diz ela, taxativa. 

Nelson Rodrigues dizia que dinheiro compra até amor verdadeiro, o que dirá a justiça. 

“Clarinha”, agora no seu auge, troca de marido como quem troca de roupa; é de personalidade manipuladora. Certa de que sua fortuna fala mais alto, está tão segura de que Scilll morrerá, que fez questão de trazer consigo um caixão maravilhoso. Ele, já entrando em anos, com mulher e um casal de filhos, tem de morrer, custe o que custar. “Clarinha” está irredutível em seu desejo de resgatar sua dignidade. 

Em comum, Norma, Medeia e “Clarinha” tem isso: foram abatidas por indivíduos que se julgavam superiores a elas, mais espertos, porém, uma vez conscientes de que foram propositalmente prejudicadas por homens que um dia chegaram a amar de verdade, não hesitaram em usar todas as armas de que dispunham para igualar suas fraquezas e fazer valer seus conceitos. 


Téo Júnior, 26, foi professor universitário
e é pesquisador de teatro.
teo.cam@hotmail.com